terça-feira, 21 de outubro de 2014

interrogando Apollonia Saintclair

- Como, onde, quando e por quê.

   Eu não falo com gosto a respeito de mim mesma por diversas razões, sendo a mais importante a que eu penso que os meus desenhos são muito mais importantes neste contexto que a minha pessoa. Digamos que eu me pus a desenhar na intensidade atual porque em 2012 eu finalmente percebi que queria ir além do nível do simples rabisco. Eu tenho desenhado regularmente desde então, não apenas por ser fascinada pelos comics europeus, mas por ter perdido o impulso para me mover em uma velocidade mais alta. Eu descobri o Tumblr por acidente enquanto procurava por imagens de referência, e comecei a postar desenhos sem maiores expectativas. O resultado foi… espetacular. A resposta apaixonada de um público completamente inesperado me fez perceber de repente que, se eu investisse tempo suficiente e, especialmente, se eu fizesse as coisas do meu jeito, teria a oportunidade de adquirir conhecimento técnico o bastante – o que eu achava que nunca conseguiria – para poder criar um mundo coerente – um mundo que pertence a mim e que eu posso compartilhar com outros.

- Por que você faz o que faz?

    Essa é a pergunta de um milhão de dólares… Não tenho uma resposta simples para isso. Primeiro, eu desenho por prazer – seu e meu. Mas já que eu não poderia parar agora, mesmo que quisesse, eu acho que desenho por necessidade. Criar imagens é dar vida – uma existência independente de mim – aos personagens do meu palco interior. É uma experiência única ser capaz de colocar no papel aspectos muito privados e íntimos da minha vida mental, refiná-los e torná-los públicos, compartilhados e absorvidos por um público multifacetado. Talvez como uma misteriosa droga…

  Mas falando sério, eu acho que a minha principal motivação é de fato a maravilha da expressão gráfica. Desenhar como uma jornada de aprendizado, como uma viagem gráfica a um mundo paralelo. Quando tenho uma ideia para uma imagem, a questão principal geralmente é “Como eu faria/Eu consigo desenhar isso?” e então “O que eu estou retratando aqui?”. Eu não vou negar que desenho figuras bastante eróticas, mas quando estou trabalhando, minha principal excitação está nas maravilhas da expressão gráfica. Como é possível que o seu cérebro possa criar sentido a partir de um ponto, de linhas ou de objetos discrepantes que por si sós são elementos absolutamente abstratos e neutros? Segue sendo um mistério – e com a minha caneta eu me sinto um tipo de aprendiz de feiticeiro com sua varinha, surpreso com o que foi capaz de evocar.

 - O que você costuma ouvir a respeito do seu trabalho? Qual é a recepção do público?

   Como eu disse, eu era – e ainda sou – absolutamente admirada com o feedback desse público inesperado. Fico muito satisfeita em ouvir que a maioria dos seguidores – entre eles muitas mulheres – não tem dúvida alguma que o que eu faço é uma abordagem artística da sexualidade, e não apenas pornografia barata. Na verdade o número de reações negativas é tão mínimo – sem contar alguns poucos machos ou fanáticos sem muito senso de humor – que pode ser facilmente ignorado.

 - Quem são seus personagens, e de onde vieram?

As personagens femininas me interessam porque elas me permitem encenar a questão do 
poder de maneira ambígua. O termo ‘heroína’ me atrai porque a heroína é a definição própria de poder adquirido pela renúncia prévia de si mesma: sem sacrifício não há controle sobre o seu destino. Eu gosto de retratar mulheres fortes cuja nudez é a armadura que as faz invencíveis e cujo abandono é a alavanca que ergue o mundo.

    O feminino eterno é um tema integral da história da arte, mas infelizmente o Ocidente escolheu ignorar por quase 2000 anos a complexidade e a variedade de personagens femininas, incluindo suas emoções, seus desejos e suas demandas. Mas ainda pior, os homens também acabaram esquecendo que seu relacionamento e seu papel com relação às mulheres também poderia trilhar um número de configurações inesperadas, e que eles também precisavam libertar-se.

 - Qual é o seu processo, de criar a cena até publicá-la?

     Eu trabalho compulsivamente. Vejo algo, uma situação ou foto, e o meu cérebro coloca outra imagem junto, e eu tento captar isso e colocar no papel o mais cedo possível. Para chegar no rascunho final eu uso tudo o que estiver ao alcance. Eu experimento, coloco juntos uma colagem de fotos de referência, observações e imaginações. Às vezes isso dura apenas algumas horas, às vezes semanas ou meses para que se alcance algo que pareça certo. Uma vez feliz com a composição, passo para a “tinta”, que nunca dura mais que um dia, se possível sem interrupções para trabalhar em outra coisa. E uma vez que o desenho esteja terminado, se estiver bom o bastante, publico sem pensar duas vezes. Eu geralmente não estou inteiramente satisfeita, mas coloco na web de qualquer modo quando sinto que não conseguirei fazer melhor no momento. Esse é o meu jeito de ser e permanecer uma novata: nada está perfeito; todo desenho é um passo em direção à melhora.

- Materiais favoritos?

   Hoje eu trabalho principalmente em meio digital. Eu realmente gosto da versatilidade da “tinta seca”, e o trabalho digital tem a grande vantagem de produzir desenhos que estão prontos para a publicação. A passagem obrigatória pelo escaneamento é eliminada e a imagem visível online é (quase) absolutamente fiel ao original.

- Como a literatura, a música, as artes e os quadrinhos se relacionam com o seu trabalho?

     Minha maior inspiração vem provavelmente da literatura; eu nasci me alimentando de autores como Jorge Luis Borges, Guy de Maupassant, H.P.Lovercraft, Richard Matheson, Gustave Flaubert, Frank Herbert – e claro, Henry Miller e Anais Nin. Todas as minhas leituras deixaram em mim imagens latentes, apenas esperando para colidir com uma observação da vida real ou uma fotografia para se revelarem.

     Quando terminei uma imagem e tenho que encontrar um título definitivo, eu geralmente pesquiso um pouco para poder entender intelectualmente o que eu fiz inicialmente pela intuição e também para encontrar links temáticos que conectem meu desenho a um tema. E, surpreendentemente, eu quase sempre encontro um mundo escondido naquela primeira intuição. Em “The Bakuss" por exemplo, eu sabia, ao ter começado o trabalho, que o desenho era sobre Dioniso, mas não sabia ainda que esse jovem deus era parte de um mito recorrente na bacia Mediterrânea, conectando uma longa série de personagens “nascidos duas vezes” relacionados a diferentes religiões, incluindo o catolicismo romano. Então desenhar é para mim contar histórias – alguns diriam até mesmo que seja contar a História. Toda imagem que crio é a soma de várias fontes diferentes que eu sinto terem uma linha em comum.

- Fale um pouco mais sobre o religioso, o grotesco e o violento em suas imagens.

    Eu uso a religião e o grotesco como um alfabeto, como um bestiário profundamente enraizado no nosso subconsciente. Uma aranha ou a cabeça de uma vaca são mais que simples acessórios numa dramatização. Basicamente eu acho que a pessoa vê no desenho o que ela está preparada para ver. São arquétipos desenvolvidos ao longo da história da humanidade, totens que ativam sentimentos, associações e todo um mundo submerso, que é parte integral de nossa memória coletiva. Então, quando eu desenho temas religiosos, não é pra ser um comentário – positivo ou negativo – sobre sentimentos religiosos (que devem ser um assunto privado e individual). O que eu, sim, estou tentando despertar são as imagens escondidas que eles transportam. Pense novamente no “Bakuss”: ele se relaciona não só com a iconografia cristã, mas é também uma imagem recorrente, provavelmente tão antiga quanto a humanidade. Nós não podemos olhar imagens sem vê-las através de todas as imagens que já vimos antes. Quando eu vejo algumas fotos do Jim Morrison, por exemplo, não consigo evitar de pensar – conscientemente ou não – em um grande e festeiro Baco, pronto para morrer e renascer, como a primavera após o inverno.

       Eu considero meu trabalho como positivo ao sexo, e a maioria dos meus seguidores parecem sentir o mesmo. Meus desenhos podem parecer violentos, mas são sempre ambíguos com relação a quem está realmente no controle. A sexualidade não é um negócio inocente flower power lindo tudo joia. A sexualidade pode ser uma coisa violenta – mesmo durante o ato mais gentil. Porque o sexo é um jogo de poder. Porque o sexo tem a ver com a vida. E a vida é um teatro violento, uma luta onde todas as possibilidades estão em jogo. Eu queria que todo mundo pudesse aceitar que uma imagem nunca deve ser tomada em valor nominal. É um insulto à inteligência parar aí e desistir de tentar entender – ou pelo menos reconhecer – a complexidade inerente oculta, a complexidade mesma das nossas emoções e da própria vida.

- Existem projetos futuros a caminho?

  Tenho tido alguns projetos externos promissores aparecendo ultimamente, mas falarei deles quando forem publicados... Meu foco principal – meu mantra – segue o mesmo: desenhar e aprender. Aprender e desenhar.

- Maiores influências.

      Bom, minhas principais influências gráficas são óbvias: os mestres insuperáveis, Moebius e Milo Manara, o Leonardo e o Caravaggio dos comics. Mas a minha admiração vai muito além de suas maestrias técnicas: o que eu gosto particularmente sobre os dois é que eles têm uma combinação imbatível de total comprometimento com os seus trabalhos sem perderem em momento algum o humor, a habilidade de não se levarem tão a sério, e a capacidade intacta de nunca pararem de querer aprender e se renovar.

+ em http://apolloniasaintclair.tumblr.com/

por Vinicius F. Barth


#

Nenhum comentário:

Postar um comentário