segunda-feira, 20 de agosto de 2018

PUTAFEMINISTA

(**) A prostituição no Brasil faz parte de um espectro tão marginalizado que não é incomum ver pessoas bem estudadas e supostamente bem informadas tratando as trabalhadoras sexuais como uma massa uniforme. É nesse contexto que Monique Prada, que é prostituta, criadora do site Mundo Invisível e também uma das idealizadoras da Central Única de Trabalhadoras Sexuais (CUTS), lança seu primeiro livro Putafeminista pela coleção Baderna da Editora Veneta no dia 25 de agosto.

“Não somos mais invisíveis”, exclama Prada em uma das páginas do livro. A autora, que encontrou na internet um espaço de debate, conta como a rede mundial de computadores foi um dos principais meios para dar voz e rosto para essas profissionais. Monique também desmistifica erros bastante comuns que rondam o tema, como a exploração sexual infantil, um crime que costuma ser colocado no mesmo balaio da prostituição (que não é crime), além de explicar que é possível ser uma mulher feminista e trabalhadora sexual sem ter vergonha disso.

Longe dos clichês da Bruna Surfistinha e do glamour forçado que costuma-se empurrar para essas mulheres, a escrita direta e ácida de Monique descreve também o moralismo e a hipocrisia dentro de movimentos ditos progressistas, que seguem dando cambalhotas ideológicas para não reconhecer a luta das prostitutas. “Eu, quando comecei a frequentar os ambientes de militância, aqueles onde as pessoas deveriam ser menos preconceituosas, precisava lidar com pessoas me tratando como imbecil todo o tempo, falando devagarinho, pra que eu entendesse as suas palavras. Me explicando sobre temas que eu conhecia melhor que elas. Cuidando suas coisinhas pra que eu não as roubasse. Não deixa de ser engraçado, até por que a única coisa que elas sabiam sobre mim era isso: Monique é uma puta. (...) Eu sempre me diverti com a hipocrisia das pessoas. Certamente muito mais do que elas imaginam”, conta em entrevista por e-mail à VICE.

Para além disso, o leitor também tem a oportunidade de entender o que é a prostituição brasileira e seus percalços legais sem mediadores acadêmicos suavizando palavras e situações. Se trata, afinal de contas, da escrita de uma mulher, uma mãe, uma puta e uma brasileira. Ainda que exista um véu sobre quem são essas mulheres e siga corrente a ideia de que elas precisam ser salvas, Monique deixa claro que as trabalhadoras sexuais escutam seus clientes mais do que as pessoas imaginam. “Todos os trabalhadores passam por ali. E as putas? Ainda que não obtenham apoio para suas próprias reivindicações, estão atentas. Acredito que devemos esperar pela grande revolução, essa onde as putas defendem também os seus direitos, e em especial o direito de andar de cabeça erguida no meio das pessoas”, frisa.

O próprio título do livro sugere ao leitor considerar a existência de uma corrente do feminismo onde as putas, óbvio, são as protagonistas e donas de suas próprias narrativas. Prada também questiona as “soluções” oferecidas por políticos de bancadas conservadoras e feministas que não reconhecem a prostituição como trabalho sexual para extinguir a categoria. Essas sugestões e conceitos de um mundo sem a figura das putas são chamadas de “utopia distópica” pela autora.

“Num período em que as políticas de austeridade tomam o mundo, esperar que um grande número de mulheres pobres não recorram à prostituição para seu sustento e de suas famílias é um erro”, argumenta. “Ao mesmo tempo, há uma guerra mundial contra a prostituição e contra as prostitutas. Se tenta banir a prostituição através de leis em vários países, se discute as supostas benesses do modelo sueco, implantado - sem sucesso, e como parte de um pacote grande de medidas para a igualdade de gênero - na Suécia em 1999 e agora reproduzido na França. Estamos em 2018 e as trabalhadoras sexuais na Suécia, que em 1999 passavam pouco de 500 anunciantes, já contam mais de cinco mil (os dados são do governo sueco, e devem constar do dossiê de Pye Jacobson sobre o fracasso das políticas de ‘abolicionismo’). O que se consegue com essas leis? Um status de indigente moral para as trabalhadoras sexuais, em uma realidade de preconceito e segregação. Muitas das leis sobre prostituição ao redor do mundo também visam atacar pessoas migrantes que desejam ou precisam, ou ambas as coisas, exercer o trabalho sexual em um país que não seja o seu país de origem. São leis baseadas em xenofobia.”

Acima de tudo, o livro de Monique não pretende pregar para convertidos, mas também informar e convidar o leitor a ver a prostituição sob a perspectiva de quem vive disso sem utilizar recursos clichês da “puta feliz” da “puta rica” ou da “puta coitada”. “A sociedade nos divide em dois modelos, às vezes mesmo mixando ambos, conforme sua conveniência. A puta rica, como julgam ter sido a Bruna Surfistinha - uma visão bastante torta, considerando o que ela mesma relata em livro, uma garota que precocemente saiu da casa dos pais e viu na prostituição um meio de sobrevivência temporário. Ou algo que remeta ao sofrimento, à devassidão, ao abuso de drogas e à precariedade. Que uma mulher possa ter o trabalho sexual através da prostituição como meio de garantir uma vida financeiramente digna para si e para os seus não lhes ocorre”, finaliza. /////////////////////////////////

(*) Monique Prada não é uma mulher comum. A forte personalidade, com fala pausada e ponderada, é comparável apenas à marcante presença online em seus perfis nas redes sociais. Entre suas grandes ousadias, está o fato de ser uma mulher que ousa ser feminista, sexuada e inteligente ao mesmo tempo.

Para todos os casos, não poupa palavras – escritas, na maioria das vezes. Monique é prostituta e divide seu tempo entre o trabalho que lhe provém sustento e a atuação como feminista que extrapola a esfera virtual. Se todo ato é político, ela leva a máxima a todos os lugares, até para a cama. "Mesmo quando estou entrando em um trabalho, tenho a liberdade de falar alguma coisa graças à internet do telefone. Não é que eu fique parada num escritório fazendo o meu ativismo, estou na rua, em qualquer lugar”, conta.

Numa tarde de feriado fria e cinza na capital gaúcha, Monique aparece para um encontro com a reportagem em que falará da batalha pelos direitos das prostitutas e pelos das mulheres. Vive e fala sobre prostituição, ativismo e feminismo, intensa e furiosamente, o que, às vezes, não deixa de lhe trazer contratempos. “A partir do momento em que tu começa a falar, o teu trabalho começa a dar uma despencada”, revela, ponderando que já deve ter perdido alguns clientes. “Não é uma interação que se espere de uma prostitua, que tenha opinião e que, eventualmente, essa opinião entre em conflito com a tua. Não é conveniente, mas eu já tenho uma lista de clientes bem antiga, então não chega a me prejudicar gravemente”, afirma Monique, que é prostituta desde os 19 anos e ativista há cinco.

Acontece de, é claro, ela deixar a cama de alguém em função de algum tópico sensível. Outras vezes, deixa a política pra lá: “Conversamos muito o tempo todo [online], então, quando encontro com eles, prefiro o sexo”. Acontece ainda de ser procurada justamente por seus posicionamentos. “Um cliente me seguia no Twitter e começou a me chamar pra sair, como se fosse pra me convencer de que o que ele fez foi uma coisa boa”, lembra ao falar de um militar que participou da ditadura no Brasil.
Monique defende os direitos das minorias e não recusa trabalho por conta de visões reacionárias. “Mas não escreveria para um portal de direita”, garante a coeditora do Mundo Invisível, um site que trata de temas LGBT, feministas, da prostituição e de direitos de cada um dos grupos. Com a tradução também de artigos publicados no exterior, o portal ajuda a expandir a educação sobre o tema.

Com base na premissa, ela mantém uma carta de clientes de longa data, numa história que começou por um impulso já desde muito cedo sentido: tinha curiosidade em fazer sexo com estranhos. “Acontecia de eu pegar uma carona ou outra e fazer sexo”, revela. Mais sobre sua trajetória? Silêncio. "Não faz sentido [falar disso]", justifica.

A opção pelo trabalho sexual não foi fácil. Aos 19 anos, era estagiária do Ensino Médio e ganhava muito pouco. “Você tem que conviver num mundo em que há pessoas com poucas opções. Há pessoas que têm a opção de catar lixo ou de fazer um trabalho doméstico ou sexual. Considero que há uma condição mais empoderadora no trabalho sexual. Parece melhor trabalhar com sexo, mas todo trabalho tem seu lado complexo”, avalia.

Monique defende a profissão como uma escolha, mas lembra que ser trabalhadora sexual não é aquela imagem bonita da prostituta jovem que quer pagar os estudos e sustentar a família, como é representado nas novelas. “É uma escolha muito difícil, tem um estigma muito grande. Do meu trabalho eu gosto, as consequências dele é que são desagradáveis.”

Muito da visão preconceituosa que é mostrada do trabalho sexual parte de um entendimento que há na atividade exploração da mulher. É o que Gabriela Leite, a primeira prostituta a militar em favor dos direitos das trabalhadoras sexuais no País e fundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, tentava explicar, lembra Monique: “Há a prostituta que vai fazer qualquer coisa por uma pedra. Para essa moça, se você pedir que ela faça um malabarismo, ela vai fazer. Ela não é uma profissional, ela está lutando pelo direito dela”. O mesmo serve para uma mulher que troca sexo por comida.

Gabriela faleceu em outubro de 2013 e deixou o “movimento órfão”, segundo Monique. Por isso, o aparecimento de militantes como ela se torna ainda mais importante para dar seguimento ao trabalho e promover pautas que estão há muito engessadas. Mesmo contando com um apoio emergente de ativistas feministas no mundo todo, a escolha da prostituição como profissão é alvo de críticas. “Somos vistas como vítimas, como na Síndrome de Estocolmo. E não somos, estamos trabalhando. Todas as pessoas exercem seu trabalho e precisam de algum modo se submeter aos patrões. O desafio do trabalhador sexual é não se submeter ao desejo alheio, simplesmente”.

Para Monique, ser prostituta e feminista ao mesmo tempo é possível, e buscar este ponto de convergência é uma das missões que ela assumiu para 2015, cinco anos depois de ter assumido o ativismo digital. “A sexualidade da mulher é uma coisa clandestina. Enquanto o homem pode e deve expor o quanto ele é promíscuo, conquistador, maravilhoso, nós nos escondemos. E imagina como é isso para uma prostituta que tá lá na esquina, ou na esquina da tua internet, no site, sempre de rosto coberto, de nomes trocados, com muito medo.”

Aos poucos, ela deixa a clandestinidade com o apoio de seus interlocutores na internet, da família e de movimentos espalhados pelo mundo. “Mas a personagem Monique deixou de existir pra mim faz tempo”, garante a prostituta que sempre trabalhou longe da abordagem direta. "Sou muito tímida."

O estigma que acompanha o sexo feminino é muito maior se pensado sob a ótica da trabalhadora sexual, que não tem direitos trabalhistas – uma luta que a gaúcha também abraçou, organizando um debate na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul para discutir os problemas da profissão e seus possíveis rumos.

No cerne da questão, balizada pelo Projeto de Lei (PL) Gabriela Leite, de Jean Wyllys (PSOL-RJ), está a regulamentação do trabalho sexual e a descriminalização da prostituição em locais privados – que atinge não só as casas de prostituição, mas também os espaços privados das prostitutas, suas próprias camas. A prostituição é uma profissão reconhecida pelo Código Brasileiro de Profissões desde 2002.

O trabalho de Monique é uma forma de afirmar o poder feminino frente às visões conservadoras que ainda persistem. O que não deveria separar as mulheres, mas uni-las, numa forma de luta contra o status quo, que mantém o feminino refém de uma criação social fundamentada no patriarcado. “A pior ofensa para uma mulher é ter uma vida sexual, e uma vida sexual ativa, mudar de parceiros. Esse é o estigma da puta”, explica.

Um estigma e um preconceito que não se encerra nas mentes conservadoras ou masculinas, como se bem sabe: “Não tem a ver com cobrar por sexo. Tem a ver com regular o sexo das mulheres. Nós vigiamos a sexualidade uma da outra, nós mesmas reprimimos. Não entendo como nos convenceram disso”.

* #cartacapital - por Fernanda Morena 
** VICE - por Marie Declercq

#
 







quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

pornografia e feminismo ...

@Stoya: Feminismo, como tudo no mundo, exceto, talvez, o fato de que o consumo de água faz bem para as pessoas, é uma coisa complexa e cheia de nuances. Adoro muitas partes do feminismo e sou grata às pessoas que são ou foram feministas. Tenho direito de votar por causa do feminismo. Eu me sinto no direito de ir para casa à noite andando sozinha sem ser molestada (quer eu realmente consiga isso ou não) por causa do feminismo. Se posso escolher trabalhar do lado de cá da câmera na indústria do sexo, em vez de qualquer outra carreira, é principalmente por causa do feminismo também. Também devo pontuar que sou branca, de classe média e me encaixo em muitas das categorias de “beleza convencional”. Todas essas coisas me conferem um privilégio imerecido na maior parte dos Estados Unidos e quanto mais perto do topo da pirâmide do privilégio uma pessoa está, mais opções ela tem em aberto para si.

Ter um trabalho que envolve falar com a imprensa significa, inevitavelmente, que tudo, desde minhas visões políticas à minha mania de mascar chiclete, está aberto a debate e discussão. As pessoas me dizem que devo ser feminista, que meu trabalho é feminista, que eu absolutamente não posso ser feminista e, certa vez, disseram que minha vagina devia ser revogada por crimes contra as mulheres.

Para mim, a palavra feminista é repleta de conotações por vezes conflituosas. Quando as feministas lutam pelo direito de todos serem pagos de maneira justa, defendendo especificamente a correção das desigualdades entre o salário para mulheres e para homens, ou defendem o direito de acesso ao controle de natalidade para todas as pessoas com útero eu acho uma coisa maravilhosa. Quando as feministas perseguem alguém que não é biologicamente mulher ou infantilizam as mulheres que fizeram escolhas que as desagradam, eu acho muito ofensivo. Quando as feministas debatem se o ato de passar batom é algo que concede poder às mulheres ou não, eu acho trivial. Mas discordar de alguns dos extremos do feminismo não é a razão pela qual me sinto frequentemente desconfortável em me dizer feminista. Acho conflitante aplicar o rótulo a mim mesma porque raramente faço algo com o propósito específico de promover os direitos das mulheres. Mas evitar dar uma resposta direta sobre se sou feminista ou não é meio que fugir da responsabilidade. Me esquivar desta palavra, para mim, seria ignorar todas as mulheres que lutaram para me dar as vantagens que tenho hoje. Então aí vai: Oi, eu sou a Stoya. Minhas perspectivas políticas e eu somos feministas... Mas meu trabalho não é.

Minhas motivações para trabalhar com pornografia, que são basicamente porque eu quis, não são necessariamente as motivações de todos os trabalhadores do sexo. As mulheres não são todas iguais, as feministas não são todas iguais, os trabalhadores do sexo não são todos iguais, o trabalho sexual não é todo igual e as pessoas não são todas iguais. Isso precisa ser constantemente repetido, porque vejo as pessoas frequentemente (inclusive eu mesma) caírem na armadilha da generalização. É provável que eu já tenha generalizado pelo menos uma vez nesta coluna. Mas vamos voltar a relação entre feminismo e minha escolha de trabalhar na indústria do sexo.

O conceito de escolha pode ser complicado. É diferente escolher entregar sua carteira para alguém que aponta uma arma para sua cabeça e escolher dar dinheiro a alguém por altruísmo ou por querer presentear essa pessoa. Há uma diferença análoga entre entrar para o trabalho sexual por pressões financeiras e falta de outras opções (seja essa falta percebida ou factual) ou se tornar um trabalhador sexual por exibicionismo, desejo pela experiência ou porque você quer mesmo, mesmo, mesmo transar com James Deen, Rocco Siffredi ou quem quer que seja.

Esse segundo cenário, em que alguém escolhe entrar na indústria do sexo por causa da indústria do sexo, é possível graças a todas as portas abertas pelas feministas nos últimos 150 anos. No entanto, minha escolha em trabalhar na indústria da pornografia não faz de mim uma feminista, assim como a escolha de tomar um Advil quando tenho dor de cabeça não faz de mim uma farmacêutica.

Uso meu corpo para fazer pornografia de gênero binário e orientação heterossexual para uma produtora que visa ter o maior apelo às massas possível. Não concordo com tudo na maneira como a pornografia mainstream ou a companhia específica para a qual trabalho operam, mas escolho minhas batalhas. Consumo muitas calorias porque ossos protuberantes no quadril são mais preocupantes do que excitantes para a maioria das pessoas. Também cubro minha pele com uma quantidade insana de meleca com regularidade. Quando chego para filmar, eu me sento numa cadeira e deixo o maquiador e o cabeleireiro fazerem seu trabalho, o de me deixar com a aparência mais convencionalmente sexy possível. Esse processo envolve com frequência cílios postiços e babyliss. Quando eles acabam, eu geralmente calço saltos altos, alguma lingerie fantasticamente impraticável e, às vezes, outras peças de roupas coerentes com qualquer que seja o personagem que interpreto na cena que antecede o sexo.
Depois que o diálogo é gravado, transo com uma ou mais pessoas enquanto a equipe de filmagem captura tudo em vídeo. Meus parceiros sexuais diante das câmeras são pessoas com quem quero fazer sexo e, pelo menos espero, pessoas que querem fazer sexo comigo. Pelo menos uma dessas pessoas quase sempre tem um pênis e a cenas seguem certo arco narrativo. Elas começam com beijos que levam à remoção das roupas. Quando os genitais em questão estão visíveis, o sexo oral é realizado. A penetração sexual (especialmente pênis na vagina) vem depois, em várias posições. Às vezes, mais sexo oral acontece entre as posições e, ocasionalmente, algum sexo anal. Aí o performer masculino ejacula e a cena acaba logo depois, porque o clímax masculino é, bem, um clímax natural e as cenas de sexo em geral não pedem pela conclusão da ação ou um desfecho.

Não há nada que promova intencionalmente o feminismo no material pornográfico que executo. Isso é entretenimento superficial, sem rodeios, que atende a um dos desejos humanos mais básicos. A pornografia existe e não vai deixar de existir num futuro próximo. Não vejo isso como algo que traga em si empoderamento ou desempoderamento para os envolvidos. Aparecer no set de filmagem e fazer meu trabalho não é um ato de feminismo.

Como entretenimento, a pornografia mainstream é tão responsável por educar os espectadores sobre saúde ou etiqueta sexual quanto o Lions Gate é responsável por lembrar às crianças que não é certo matar outras pessoas, apesar do que elas viram no filme Jogos Vorazes. Não faz parte do trabalho do Michael Bay ou da Megan Fox mencionar em cada entrevista que robôs gigantes do espaço são ficcionais, nem é o trabalho de todo artista pornográfico discutir os protocolos de teste de saúde da indústria, ou como o consentimento é dado antes de cada filmagem. No entanto, sinto a necessidade de discutir esse tipo de coisa e outros artistas – como Jiz Lee, Danny Wylde e Jessica Drake – que sentem necessidade de destacar o contexto já disponível dos filmes adultos e fornecer um contexto adicional.

Mas e o alcance maior dos efeitos culturais da pornografia? Não posso desconsiderar inteiramente a acusação de que ver um vídeo no qual vou direto do sexo oral para o anal inspira um ou outro rapaz a enfiar rudemente seu pênis no reto da parceira sem discussão ou cuidado. Sejam lá quem forem, esses tipos de caras estão precisando a oportunidade de serem relembrados de que há diferenças entre a TV e vida real. Em contraste com esses invasores anais babacas, estão as mensagens que recebo semanalmente de que, depois de ver meu corpo ou minha vagina retratados como algum tipo de símbolo sexual, isso fez alguém se sentir mais confortável com seu próprio corpo. Também há mensagens de pessoas que dizem que não sabiam que coisas como sífilis podem ser transmitidas mesmo com o uso da camisinha e agora veem os benefícios de fazer testes regularmente, de pedir os testes dos parceiros além do uso do preservativo.

Enquanto eu gostar de atuar na indústria pornográfica, e os efeitos sociais positivos superarem os negativos, vou continuar fazendo isso. Mas não vamos fingir que atuar na pornografia mainstream é alguma espécie de ato libertador para o sexo feminino.

 

Adeus, britadeira: Os ângulos ginecológicos e as transas a marteladas do pornô tradicional nunca agradaram à sueca Erika Lust. Cansada de categorias como hardcore e extreme, ela decidiu investir em uma nova vertente erótica: a feminista. Nela, já lançou quatro filmes, três deles premiados no Feminist Porn Awards. Cabaret desire, um de seus filmes mais premiados, começa numa noite de leitura de contos eróticos. Erika conversou com a revista Tpm por e-mail e conta, aqui, que tipo de cena merece lugar nos seus roteiros. Também explica por que outras, como sexo anal e gozo no rosto, ficam de fora. “O sexo ainda é uma questão política.” 

 

Tpm. Seus filmes foram pioneiros do pornô feminino. Acha que algum dia a distinção entre pornô para homens e para mulheres vai deixar de existir?

Erika. Acho que o pornô sem rótulos de gênero seria bacana. Mas, honestamente, a diferença de apelo e estética entre os dois tipos é tão evidente que se torna difícil conciliá-los. Espero, em vez disso, que o pornô evolua até uma variedade grande, para todo tipo de público. Hoje vemos uma amostrinha disso na cena independente.

Que tipo de roteiro considera excitante para as mulheres? Não posso falar por todas as mulheres, mas, na minha opinião, são as situações em que a imaginação não precisa ir muito longe para atingir o nível “muito sexy”. Cenas como: uma massagem que se torna sensual, reencontrar um flerte antigo, ver alguém fazendo sexo, ir para a cama com o vizinho com quem você fantasia há meses, essas coisas.

Por que escolheu não usar cenas de sexo anal e de “gozo na cara” em seus filmes? Tento retratar o que eu e as mulheres à minha volta acreditamos ser sexy e excitante. Para mim, esse tipo de cena é irritante. O sexo anal e essas ejaculações exageradas fazem parte do status quo da indústria pornô de tal maneira que o que começou como uma preferência pessoal se tornou uma afirmação política. Se algumas mulheres se excitam com isso, bacana. Mas eu não, então escolho não filmá-las.

Você costumava assistir a filmes eróticos antes de começar a filmá-los? O que achava deles? A pornografia mainstream que via quando jovem – e, mais tarde, na universidade, quando estudava sexualidade e feminismo – era horrível. Mesmo que o filme me despertasse alguma imaginação, o resto era péssimo: o contexto, a fotografia, os personagens e o rumo do sexo. Tudo era tão estéril e previsível, muito diferente das experiências reais de sexo. 

Que filme a excita? Um dos meus favoritos é O amante (1992), de Jean-Jacques Annaud. Se passa no Vietnã, quando o país era colonizado pela França. É baseado na história real de um amor impossível entre uma francesa e um rico negociante chinês. A fotografia ainda prende minha respiração. Sua sensualidade é irresistível.

Vê seu trabalho como algo político? Às vezes, me sinto uma política quando represento o erotismo indie e dissemino a mensagem de uma sexualidade favoravelmente feminina. Então, de um modo estranho, minha formação em ciência política [Erika estudou na Universidade de Lund, na Suécia, uma das mais prestigiadas da Europa] me deu ferramentas valiosas para o meu trabalho. É triste dizer isso, mas o sexo ainda é uma questão política.

Você tem duas filhas. Como planeja falar com elas sobre sexo e erotismo? Minhas filhas são muito novas, então ainda não planejei essa conversa. Mas são duas coisas diferentes e, por isso, pretendo falar sobre erotismo somente após a terceira ou quarta conversa sobre sexo, quando sentir que a base está sólida. Cada criança é diferente, então introduzir esses tópicos vai depender do desenvolvimento delas, não da idade. 

Na sua opinião, o que as mulheres têm a ganhar assistindo a filmes eróticos? Algumas mulheres tiveram experiências ruins com o pornô mainstream e simplesmente dizem: “Não é para mim”. Mas garanto que, se elas encontrarem alguma forma de erotismo que as agrade, o papel do sexo em suas vidas mudará drasticamente. 

Seu último filme, Cabaret desire, venceu cinco importantes prêmios do cinema pornô até agora. Como é ser tão reconhecida como uma das melhores criadoras em sua categoria? Quando você tem vontade e paixão por uma coisa que ninguém mais está fazendo, no começo pode parecer que está nadando contra a corrente, fazendo algo solitário e exaustivo. Por isso, conquistar o reconhecimento com Cabaret desire foi incrível. Além dos prêmios, sou sempre grata aos fãs, que demonstram gostar do que estou fazendo. Isso me impulsiona.

ÉPOCA - Por que a senhora decidiu se dedicar à pornografia?
Erika Lust -
Quando eu comecei a assistir a filmes pornôs, vi um mundo com o qual eu não conseguia me identificar. Sentimentos que eu não sentia, situações que não expressavam a minha sexualidade, nas quais as mulheres eram apenas objetos para o prazer dos homens. Eu não via as mulheres buscando o próprio prazer, não as via representadas da maneira que eu gostaria de ver. Mas, de alguma maneira, aqueles filmes me provocaram. Um ato sexual provoca você - aliás, essa é a ideia do pornô. Alguma parte de mim gostou do que viu, então, eu pensei “Por que aquilo não poderia ser diferente?”. E vi que poderia ser. Se eu posso fazer sexo da maneira que eu quero, por que não posso mostrar desse jeito?

ÉPOCA - Que elementos um filme tem de ter para ser definido como feminista?
Erika - Eu acho que não importa se chamamos um filme de “pornô feminista” ou “pornô para mulheres”. Eu luto para as mulheres terem voz no audiovisual adulto. A única coisa que importa é podermos falar. E eu sei bem o que as minhas amigas e eu não queremos ver: caras mafiosos, armas, prostitutas, mansões enormes, garotas com silicone, carros esportivos.... Nós não precisamos dessas coisas para nos excitarmos. Nós queremos pessoas reais, vivendo situações reais. Nós queremos saber por que essas pessoas estão fazendo sexo.

ÉPOCA - Os pornôs feministas podem mudar a visão da sociedade sobre a sexualidade da mulher?
Erika - Nós vivemos hoje em uma sociedade “pornoficada”. A pornografia tem uma presença enorme na internet, é vista nos meios de comunicação de massa, enfim, ela saiu do armário onde esteve escondida por um bom tempo. Nesse contexto, é muito importante que as mulheres tenham uma postura crítica em relação a esse fenômeno. Os valores que são apresentados na pornografia devem ser continuamente analisados e questionados. O que os homens veem e aprendem com os pornôs nos afeta profundamente em nossa vida diária como mulheres. Muitos preconceitos contra a sexualidade feminina vieram do pornô, graças à ausência ou escassez de outras influências. Eu acredito que, se as mulheres participarem dessa discussão, nós teremos uma oportunidade incrível de explicar nossa sexualidade, de uma maneira explícita e gráfica. Que maneira melhor teríamos para explicar aos homens um assunto que eles não entendem muito bem?

ÉPOCA - A pornografia do futuro será dominada pelas mulheres?
Erika -
Os diretores que fazem os pornôs comuns vão continuar expressando seu ponto de vista sobre a sexualidade, que eu aceito e respeito. Eu não estou tentando impor nenhum tipo de censura à pornografia. Só não quero que essa seja a única visão expressa. Eu me tornei mãe recentemente e eu gosto de pensar que, no futuro, na adolescência, minha filha receberá mensagens positivas sobre sua sexualidade, com o ponto de vista e os valores das mulheres representados.

#

sábado, 4 de novembro de 2017

Carly Rae: "A pornografia me libertou."

"Meus amigos me chamam de Jade, mas meus seguidores no Twitter me conhecem como Carly Rae. Tenho 23 anos e moro em Manchester. Estudei moda e tenho um diploma universitário. Mas, em vez de investir numa carreira na indústria da moda, fiz uma escolha que pode chocar muita gente."

É assim que a britânica Jade começa a explicar o porquê de ter decidido se dedicar ao universo pornô. Protagonista de um documentário dirigido por Rachel Tracy para a BBC, ela garante amar as oportunidades que esse trabalho lhe deu.

"Fazer parte desse documentário é importante porque eu queria mostrar algo que verdadeiramente reflita a indústria adulta. Geralmente a gente só vê na mídia o impacto negativo que ela pode ter na vida da pessoa ou das pessoas que entraram nisso pelas razões erradas", diz.

O filme chama-se Jade: Why I Chose Porn ("Jade: Por que eu escolhi o pornô", em tradução literal) - e ela deixa claro que quer usá-lo para desconstruir a imagem parcial que se tem desse universo. "Quando se pensa em pornografia, vêm à cabeça mulheres com pele alaranjada e toneladas de maquiagem. Eu não sou nada disso, não quero ser como outras estrelas pornô. Quero ser eu mesma, nada mais", afirma.

Jade ganha US$ 1,5 mil (cerca de R$ 4,5 mil) por dois dias de trabalho - fazer sexo com estranhos na frente de uma câmera. E usando seu nome artístico, Carly Rae, tem hoje mais de 700 mil seguidores no Twitter.

Mas de onde surgiu a ideia de entrar para esse mercado?A atriz pornô conta que o interesse pela pornografia surgiu quando começou a assistir a filmes na internet, com apenas 13 anos de idade. para ela, trata-se de um fascínio que começou na infância e persistiu. "Sempre pensei que um dia me dedicaria àquilo."

Jade começou a fazer dinheiro com pornografia chegou quando entrou para a faculdade. Ao se mudar para o condado de Warwickshire para cursar moda na Universidade Metropolitana de Manchester, ela decidiu vender fotos e filmes pornográficos para um site. "De repente, tinha US$ 150 (aproximadamente R$ 450) a mais na minha conta bancária", conta.

O site para o qual Jade contribuía de forma amadora não demorou em lhe fazer uma proposta para protagonizar um filme profissional. "Respondi que adoraria, me parecia incrível", conta.

Mas antes do sucesso, ainda no início da carreira, ela enfrentou problemas com uma hashtag que a ligava à universidade onde estudava.

Ao se formar, no verão de 2015, Jade decidiu que não se dedicaria à moda."Um dia pensei em ser designer e ter minha própria marca, ou trabalhar para um estilista importante", confidencia.

Mas, se quisesse um trabalho assim, teria que estagiar ou trabalhar de graça por quase um ano, argumenta. "Não posso me dar a esse luxo. Tenho que pagar o aluguel, as contas." Com a pornografia, ela calcula que ganha em média US$ 57 por hora de trabalho. Já filmou em Barcelona, na Espanha, e em Praga, na República Checa - os ganhos diminuem se são descontados os gastos com as viagens.

No entanto, Jade sustenta que não se transformou em atriz pornô apenas pelo dinheiro: segundo ela, o trabalho também melhorou sua situação emocional. "Queria fazer amigos, mas não conseguia. Passava os dias sozinha, chorando. Estava em depressão", conta. A carreira pornô mexeu com sua autoestima. "As pessoas começaram a dizer que eu era bonita, que queriam me conhecer. Tudo mudou para melhor", diz. "Comecei a acreditar em mim mesma como nunca antes."

Jade afirma também ter reconstruído sua relação com os homens. Ela garante que, na indústria pornô, é tratada com respeito por eles. "Mas na vida real, nem tanto." Sua primeira experiência traumática ocorreu aos 16 anos, quando foi assediada sexualmente num banheiro - ela conta que um homem tirou sua blusa e tocou seus seios. "Estava sozinha e me lembro perfeitamente como ele entrou e me olhou. Havia algo no rosto dele que me fez saber de imediato o que estava para acontecer. Quando ele terminou, me jogou no chão. Não me violou, não foi tão extremo, mas o que ele me fez foi algo que não saiu da minha cabeça por seis anos".

Jade deixa claro, porém, que o mundo pornô está longe de ser perfeito - há muita coisa que a incomoda e a afeta tanto emocionalmente quando fisicamente. Ela reclama, por exemplo, de ter de se relacionar com homens que tem pênis muito grandes ("meu corpo não foi feito para isso"). E também não gosta de fazer cenas vestida de colegial. "É um fetiche muito comum, mas quem veste essas roupas na vida real são crianças", observa.

Há reservas ainda em relação a roteiros de violência e submissão. "Rodar essas cenas não é um problema, eu gosto da atitude dominante do homem nos filmes. É divertido", reconhece. "Mas sempre haverá um idiota que vê o filme pornográfico, chega em casa e bate na namorada porque acredita que deve ser assim."

A atriz pornô ressalta ser difícil conciliar a carreira com a vida pessoal, mas está longe de se arrepender.

"A pornografia me libertou."

14 agosto 2016

BBC

#




quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Rocco Siffredi: A indústria mudou porque a internet fodeu tudo.

Você pode não conhecer o nome dele, mas se assistiu a filmes pornô em algum ponto dos últimos 30 anos, provavelmente está familiarizado com o pau de 27 centímetros de Rocco Siffred. Apelidado de "o Garanhão Italiano", o ator de 52 anos já participou de mais de 1.500 filmes adultos e já transou com aproximadamente quatro vezes mais mulheres, o que o coloca no mesmo patamar de gente como Ron Jeremy e John Holmes.

Nascido Rocco Tano em Abruzos, Itália, a mãe do astro pornô inicialmente queria que ele fosse padre. Mas o coroinha tinha "o diabo no meio das pernas", como ele se refere ao próprio pênis, e uma carreira no entretenimento adulto se tornou mais ou menos inevitável quando ele começou a procurar por isso. Ele já transou com quatro gerações do pornô, estrelando longas de 35mm com roteiro e enredos, e atuando durante as eras do VHS, DVD e internet em produções XXX. Ainda assim, parece que agora Siffredi cansou da putaria. Recentemente ele anunciou sua aposentadoria, algo que já disse várias vezes no passado. Mas, como pai de dois filhos, ainda é um mistério se sua lendária piroca vai mesmo ficar longe dos holofotes.

Esses fatos biográficos, no entanto, não interessavam aos cineastas franceses Thierry Demaiziere e Alban Teurlai. Seu extraordinário documentário Rocco, que estreou recentemente no Festival de Cinema de Veneza, é um retrato que tenta desvendar o que se passa na mente do ator pornô. É um olhar introspectivo sobre Siffredi, que se abre sobre a morte do irmão, sua reação sexual à morte da mãe, seu relacionamento com a esposa e os dois filhos, e, claro, porque ele gosta tanto de realizar atos carnais diante das câmeras. Mas o filme lida principalmente com a culpa católica do ator. Tipo um Boogie Nights dirigido por Martin Scorsese.

O filme começa do único jeito possível: com um close do pênis de Siffredi. E a narrativa segue enquanto ele escolhe as atrizes para um filme que está dirigindo, entrevistando cada uma para saber se elas estão preparadas para os extremos sexuais que ele deseja mostrar, desde closes de anal a jogos envolvendo asfixia erótica. Depois os cineastas seguem Rocco até Budapeste, onde sua esposa, Rozsa Tano, mora, e depois em viagens para a Itália e Los Angeles. No filme, os diretores oferecem um vislumbre geral da indústria pornô, detalhando, por exemplo, os extremos que alguns artistas estão dispostos a ir para ter sucesso.

Uma das cenas mais angustiantes (NOTA: HEIM ???!!!) envolve uma mulher colocando os dedos de Siffred na boca, imitando um boquete, mas enfiando tão fundo que lágrimas começam a sair de seus olhos. Siffredi é fascinante, alegre e depravado ao mesmo temo. Falamos com o artista depois da estreia do documentário no Festival de Cinema de Veneza.

VICE: Por que fazer esse documentário agora? 
Rocco Siffred: Já tinham me abordado algumas vezes para fazer um documentário, o primeiro foi um diretor polonês quando eu tinha 40 anos. Naquela idade, eu não achava que tinha muito a dizer, mesmo estando na indústria há 20 anos. Depois vieram cineastas italianos, mas achei que os italianos não entenderiam a sexualidade sem preconceitos. Aí vieram os franceses [os diretores Thierry Demaiziere e Alba Teurlai]. Você pode dizer que nasci na França, pelo menos artisticamente, porque foi lá que me tornei ator pornô.Me encontrei com os diretores e eles disseram que queriam fazer um filme sobre o pornô mas precisavam de um protagonista, e eles achavam que eu podia ser essa pessoa. Depois de algumas horas de conversa, eles mudaram de ideia e disseram que queriam focar a história em mim. E acho que atingi um ponto da vida onde tudo se tornou mais problemático, então eu queria fazer esse filme como um jeito de despejar tudo que está dentro de mim. 

Você fala sobre as mortes da sua mãe e do seu irmão no documentário. Foi difícil abordar esse assunto?
Sabe, passei por muito sofrimento na minha vida. Quando você tem seis anos, perde seu irmão e vê sua mãe enlouquecer por causa da dor, é impossível continuar normal. É impossível esquecer essa dor. Do nada, você só quer fazer algo que torne a vida um pouco menos difícil. Por causa dessas tragédias, eu estava pronto para fazer qualquer coisa. 

Mas por que pornô? Eu já era sexualmente ativo aos 11 anos, e lembro que todos os outros garotos tinham zero experiência com sexo, então eu sabia que havia algo especial. Mas isso não foi o principal. O principal é que eu estava sempre tentado dar algo a minha mãe que a ajudasse com a dor que ela estava passando por causa da morte do meu irmão. Também lembro de achar uma revista quando eu tinha 13 com fotos de um cara chamado Supersex, que era um ator pornô famoso nos anos 70. Haviam fotos dele transando com uma morena, aí você virava a página e tinha fotos dele transando com uma loira, você virava a página e ele estava transando com uma ruiva, aí você virava a página e ele estava transando com as três. Eu vi aquilo e disse que queria entrar para aquele negócio. Liguei pro meu irmão mais velho, que morava em Paris, e contei isso para ele. Ele disse: "você é louco". Aos 16, liguei de novo e ele disse "você não desistiu? Você é completamente louco!" Aí liguei de novo aos 20 e ele me disse que se fosse até um clube de swing, eu encontraria alguém do pornô para me ajudar nisso. E funcionou. As pessoas me viram transando na frente de todo mundo e daquele dia em diante, minha vida mudou. Era o paraíso. 

Por que você chama seu pênis de "o diabo no meio das minhas pernas"? Porque o diabo possui seu corpo. Não é você que o possui. Por muitos anos, usei o sexo para minha conveniência. Quando o sexo começa a te usar, isso significa que você está viciado, e isso é o diabo. É a mesma coisa com drogas e álcool — tudo isso é o diabo. Quando ele está te usando, faz você fazer tudo que ele quer. Ele te faz fazer coisas que você realmente não gosta. 

Essa não é a primeira vez que você fala em se aposentar. O que aconteceu aos 40, quando você disse que só trabalharia atrás das câmeras como diretor? Tentei me aposentar pelos meus filhos. Eu queria parar de atuar diante das câmeras na época em que eles eram adolescentes e estavam prontos para começar suas vidas sexuais. Tentei fazer coisas do outro lado das câmeras para não prejudicá-los. Por outro lado, isso foi um erro. Primeiro, prejudiquei a mim mesmo parando. Segundo, comecei a procurar prostitutas duas ou três vezes por dia. Três vezes por dia: prostitutas, prostitutas, prostitutas... porque eu estava acostumado a fazer muito sexo. 

Isso afetou seu casamento? Claro, mas estou com uma mulher muito inteligente que entende minha situação. Ela me disse que eu precisava voltar a atuar. Se é disso que você sente falta, e está transando com prostitutas para substituir [a atuação], então qual o objetivo de se aposentar? 

Foi estranho para você pagar por sexo em vez de ser pago para transar? Sim, e às vezes acontecia uma coisa engraçada. As [trabalhadoras sexuais] viam meu pau e diziam "uau, que enorme, por que você não vira ator pornô?" Sério, isso aconteceu várias vezes. E eu respondia "é, vou pensar nisso". 

Como é estar sempre falando sobre o tamanho do seu pau? "Quantos centímetros tem o seu pau?" é uma pergunta que respondo com frequência, então estou acostumado. Sei que meu trabalho é o meu pênis. Sei que quando trabalho, são duas pessoas trabalhando: eu e o meu pau. Nós dois somos famosos. Na minha cabeça, isso sempre esteve claro. Não estou desapontado. Não me sinto um objeto. Trabalho com meu pau e nunca tive problemas com isso. Nunca.

Como você acha que o pornô mudou durante sua carreira? Passei por quatro gerações diferentes, e há uma grande diferença entre a época em que comecei e hoje. Antes você tinha duas cenas por semana, muitos diálogos, filmávamos em 35mm, etc. Levava mais tempo para mudar a posição da câmera, as luzes e tudo mais, então o sexo era curto. Havia muito diálogo, muita comédia e muita estrutura. Hoje é apenas sexo, muito sexo e zero diálogo. Não tem mais romance. São apenas tomadas diferentes do corpo feminino: tomadas dos peitos, tomadas apenas dos pés, tomadas do anal. Ultimamente, a maioria das garotas faz tripla penetração anal, e às vezes você nem toca nela; são só três paus enfiados juntos. Isso é completamente diferente do que costumava ser o pornô. 

E isso é melhor ou pior? É muito pior. Eu, alguém que transa com uma mulher com o coração, preciso de conexão, preciso usar minhas mãos, preciso do cheio, preciso do poder. Preciso usar tudo isso. Hoje, eles não têm tempo para nada disso. Eles não dão a mínima. Eles só precisam dos corpos. Corpos, corpos, corpos. Gente nova. Paus novos. Não gosto de sexo sem conexão. Não temos mais dinheiro para fazer [narrativas longas] como antigamente. A indústria mudou porque a internet fodeu tudo. Ninguém tem dinheiro para fazer grandes filmes com enredo. Gosto da internet porque isso ainda dá a pessoas que não tem dinheiro, que vivem em países onde as garotas são invisíveis, a oportunidade de sonhar em ver uma garota bonita fazendo coisas incríveis. Por outro lado, infelizmente, isso destruiu completamente a indústria. Tem sexo grátis por todo lado, então por que pagar? 

Você conseguiu fazer Kelly Stafford sair da aposentadoria para seu último filme. Por que isso era importante? Kelly é a maior atriz pornô para mim. Ela é A atriz pornô. De certa maneira, ela é como seu eu fosse mulher.

Ela é mais poderosa que você por ser é mulher? Cem por cento. Sem dúvida. Ela é muito poderosa. Sinto atração por pessoas que são especiais. Pessoas especiais sempre me atraíram. Quando alguém diz "essa pessoa é louca", quer dizer que ela deve ser inacreditável. Não gosto de gente normal. Eles sempre me entediam. 

Você acha que algum dia vai realmente se aposentar?

Foi o que eu disse depois desse filme, nunca mais vou responder essa pergunta. Quer dizer, nunca vou dizer que vou me aposentar ou que vou voltar. No momento estou fora, mas não posso dizer que não vou voltar. 

Para mais informações sobre o filme Rocco, visite o site do projeto.

 
Tradução: Marina Schnoor

VICE

#






sexta-feira, 23 de setembro de 2016

COM ESSE BATOM NÃO DÁ

Conhecem os buracos da rua todos, cada um deles, dançando com o carro para evitá-los à medida que avançam. Passam pela mesma rua vezes e mais vezes por noite, até se decidir. E é assim, à distância, que você já reconhece um acostumado ao bairro, cliente conhecedor da dinâmica. Gritam "delícia" alguns, meio mecanicamente (quem grita assim grita o mesmo pra todas, nada significa), outros ficam só encarando, a maioria passa sem reação, como se a rua fosse prateleira, como se nós objetos: não há necessidade alguma de, pelo olhar, indicar o que ele achou ou deixou de achar, quanto menos dizer o que quer que seja. E lá vou eu tentando atiçar suas curiosidades, suas vontades, um beijo lascivo aqui, um aceno ali, um "oi", "vem cá". E é isso.

Pois pararam três pra saber o preço, me conhecer melhor, antes do primeiro cliente da noite. Um veio perguntando se eu metia forte, arrombava o edi dele, tadinha de mim... condição zero de garantir ereção, ainda mais quando o cara não coopera (me tratar como gente é fundamental, e não como um pinto sobre pernas). Nada feito. Ele sentiu que não era a minha e eu não desmenti. No sexo prefiro sempre que nada dependa da minha ereção, ou pode ser que não role nada. Os outros foram bem xis, só perguntando quanto, interagindo pouco e "vou dar uma voltinha, qualquer coisa eu volto". Os caras aprenderem a nos tratar como gente e não coisa, qual a dificuldade? Incrível o quanto conseguem abalar sua autoestima mesmo quando você está super bem.

Mas veio o bendito primeiro e acabou que único. Parou a motoca, conversou comigo em cima dela mesmo, eu sedutora, voz sexy, brincando com a mão na sua virilha enquanto jogava o velho blablablá, ele se animando todo. "Quanto é o oral?" Faço vinte pra você, só pra você. "Hmmm... mas onde?" Ah, qualquer lugar... mas se você for tímido tem o estacionamento lá embaixo, mais escurinho, ou o matel. "Vai o estacionamento então, mas e esse batom? A esposa me mata se eu chegar em casa com a cueca suja!" Se tem coisa que me irrita é isso. O cara tem esposa em casa, esperando, a travesti servindo só pra uma rapidinha paga com trocados. Mas tirei o batom mesmo assim, na mão, ele vendo, e lá fomos nós.
Foi de moto na frente, sozinho, mas pagou adiantado pra me convencer que era sério. Eu fui a pé, duas quadras. Quando cheguei, já estava lá. Me explicou que tem uma com quem sempre sai, mulher, não travesti, só que ela não tava na rua, aí ele aproveitou pra uma variada. O papo tava bom, mas tempo é dinheiro e lá vai o zíper, jeans abaixado só até a metade da perna, pra não sujar no chão de terra e camisinha usada. Necão bonito, gorducho, dava até gosto imaginar na boca, mas não, taca-lhe guanto desde o começo, com a boca mesmo, únca forma de pôr quando ainda está murcho. Começa o oral, ele em pé, eu agachada no salto, cãimbras e mais cãimbras, o pau dele no máximo meia-bomba, o meu sem dar sinal de vida.

Uma hora endurece, ele se anima, pergunta quanto a mais pro completo, "mais dez", lá vem dez a mais pro meu bolso. Fico de pé, ufa, gelzinho na neca e no edi, ele se encaixando por trás, me inclinando sobre a moto, começando a forçar a portinha tentando entrar. Nada. Tou meio machucada, a verdade é essa, sem conseguir resolver a questão (ainda escrevo mais a respeito). A coisa é que, de tanto insistir, uma hora a ereção já não tão vigorosa assim foi por terra e não houve cristo que a reerguesse. Ele me pede então pra tirar o guanto e eu bater uma pra ele. Fico meio assim, era a última camisinha que eu tinha (esqueci a bolsa com uma amiga), avisei que não teria mais como penetrar depois, ele ok, só queria gozar com uma punhetinha minha.

Mãos à obra, de cara ele solta o famigerado "faz o que quiser de mim, me toca onde você quiser". Quem me lê, já sabe o que significa, onde ele me quer tocando. Sim, edi, cu, justo onde eu vou chegando ali por baixo, pelo períneo, "faz o que você quiser", meia-bomba virando pedra, "sou todo seu", até que ele goza. Não foi tão rápido assim, no entanto, eu tendo que trocar de mão por cansaço, ele assumindo o trabalho no final, eu só tendo que massagear seu cuzinho. Ele chegou ainda a pedir que eu enfiasse o dedo, mas tá boa que vou pôr meu dedinho lá: contente-se com as beiradas, querido. E vê se paga um drive-in a próxima, porque transar em pé ninguém merece.

por Amara Moira

AQUI

#

terça-feira, 17 de maio de 2016

O XIBIU DE MARIA

Eu era tão pequenininho! A fimose bicuda tornava dolorosa qualquer manipulação, quanto mais a ensaiada punheta que eu tentara imitar, ao ver os meninos maiores gozar com gala e tudo ao final do banho, nus nas águas morenas do Rio Vaza Barris, em Itaporanga.

Pratiquei, pratiquei, até que alcancei a instigante coceirinha da gozada infantil, o que me habilitou a contar aventuras mentirosas á turma dos meninos grandes que já sabiam gozar.

Introduzir a pinta num xibiu seria o próximo passo. Pois bem, um dia cheguei aos limites do quintal para meter no complacente buraco macio de uma bananeira e quando olhei para a cerca vizinha lá estava Maria, a empregada da família ao lado, arreganhado o xibiu numa fresta da cerca e a me chamar aflita.

Um xibiu tem nuances de cor que vão do roxo molhado ao branco fúnebre. Lá dentro, cada dobra pulsa como um coração do lado de fora. A tabaca aberta era-me uma coisa nunca vista, curiosa e instigante. Exalava aquele cheiro de rêgo de cozinha, ancestral e embriagador, um que de pimenta em ovas de siri, algo que me assaltava as narinas e se resolvia lá ermbaixo no pinto entumescido. O tônus do sexo que ainda hoje eu tento reavivar nas carnes que cheiro e que se tornou a chave da minha lubricidade.

Um xibiu arreganhado na cerca, tão poderoso que me engoliu todo e me mordeu lá dentro, me arregaçou o prepúcio, ardeu o quando quis, tirou e botou inúmeras vezes até que Maria enfiou em si os próprios dedos e enlouqueceu aos gritos e convulsões.

Essa Maria se debatendo ao gozar no quintal da vizinha é um dos mistérios que me intrigam, desde a infância.

 Amaral Cavalcante

quarta-feira, 11 de março de 2015

Meia hora ...

"Meia hora de pica no seu cu". "Oxe, e eu pensando que você ia me desejar uma coisa ruim". O diálogo, meigo, foi sussurrado em tom de brincadeira por duas amigas no final de um show na Casa Rua da Cultura. Não as conhecia, nunca mais as vi, mas isso nunca me saiu da cabeça ...

Achei EXTREMAMENTE excitante.

pornofagia

Clóvis Basílio dos Santos, hoje com 60 anos, não guarda boas lembranças de sua infância na Baixada Santista. “Duas ou três vezes por semana, o pau comia pra cima de mim”, disse quando nos encontramos numa noite chuvosa do começo de fevereiro, no interior de São Paulo. Aos 17 anos ele fugiu das surras do pai e foi morar com o avô. Ficou lá por três meses, até juntar algum dinheiro.

Técnico em metalurgia pelo Senai, seguir uma faculdade não estava em seu horizonte, tampouco servir o Exército – “Um amigo da família conseguiu minha dispensa, coisa rara na época”. Em 1973, arranjou um emprego numa loja que consertava escapamentos. O serviço ficava perto do cais de Santos, na rua Brás Cubas. Na carteira, o rapaz ganhava um salário mínimo. Alguns clientes lhe davam caixinha, o que aumentava o orçamento. Em outras ocasiões, ele fazia o que chama de “pequenos trambiques”: “Chegava algum bacana com algum problema fácil de resolver, e eu dizia: ‘O silencioso tá fodido.’ Aí eu guardava o silencioso, e depois vendia a um preço mais barato para um cliente mais humilde. E nisso eu também faturava algum.”

A loja de escapamentos era só um dentre os muitos outros estabelecimentos da rua, que incluíam prostíbulos. “A zona do cais de Santos é a maior zona do país”, comentou, com certo orgulho e talvez alguma hipérbole. No final do expediente, quase toda noite ele perambulava pelo bairro. Na primeira vez que tentou transar com uma prostituta, ela recusou. E mesmo assim lhe cobrou uma taxa. Na segunda vez aconteceu algo parecido: a prostituta chegou a masturbá-lo, mas não passou daí. Ele pagou de novo. “Eu era muito inocente”, ele diz. Com 18 anos e uma graninha no bolso, quis conhecer as casas de tolerância. Então foi à pensão Brás Cubas. Pagou pelo quarto e deu o dinheiro para a prostituta antecipadamente. Aquela noite conseguiu, enfim, transar. Logo depois começou a namorar a moça.

Quando conversamos, Basílio dos Santos, que é negro e tem as feições arredondadas e simétricas, a ponto de parecer um retrato falado, vestia regata azul e bermuda verde fosforescente. O único indício de sua idade eram escassos fios brancos que tentavam nascer na cabeça raspada, visíveis apenas de perto.

Ele falava animado, pondo e tirando os óculos escuros de aviador. Descreveu a transa com intensidade, alguma variedade semântica e muita repetição – “Eu era putão. Putão, putão, putão, putão, putão” –, como se quisesse atingir o grau zero da obscenidade. A ênfase que dava a suas digressões sexuais tornava sua história pessoal opaca e cronologicamente confusa. Basílio dos Santos passou um bom tempo falando da “prostituta enorme” que foi sua namorada por seis meses.

Só muito mais tarde – após discorrer sobre a carreira de metalúrgico e fresador ferramenteiro em São Paulo, sobre as orgias que organizava com amigos no fim dos anos 70 e sobre as noites que passava assistindo a pornochanchadas depois do expediente – ele esclareceu em que momento foi “batizado” com o apelido pelo qual é conhecido. Em 1990, quando atuava em seu primeiro filme pornográfico, no Rio de Janeiro, o produtor que o havia contratado não estava satisfeito com o nome Clóvis, que considerava muito banal. Ao ver a genitália do ator – a razão da resistência das prostitutas do cais de Santos –, decretou: “A partir de agora você se chama Kid Bengala.”



Era uma manhã nublada de fevereiro, e o carro serpenteava a estradinha bucólica em algum trecho impreciso nas cercanias de Carapicuíba, em São Paulo. Árvores e mansões pontuavam o trajeto. “Quando eu crescer quero morar numa casa dessas”, disse Cindy, e todos riram. No banco de trás, além dela, acomodavam-se os atores Lolah e Loupan, e Carla Lira, a maquiadora – todos contratados pela produtora Brasileirinhas, mencionados aqui por seus nomes artísticos. O destino era uma casa num condomínio fechado da região, onde seria gravado um filme com temática carnavalesca. No trajeto, Cindy contou que naquela tarde faria sua primeira cena de sexo anal. Decidira encará-la com Lolah e Loupan porque tinha confiança no casal. “Me sinto segura com eles, temos amizade”, resumiu, sorridente.

Ao volante, o diretor Gil Bendazon, um paulistano da Mooca, ruivo, de olhos claros e barba quase translúcida, explicava como certa vez levou bolo de um fã. A Brasileirinhas havia feito uma promoção: sorteariam um cliente para atuar numa filmagem. Avisaram o vencedor, que, animado ao telefone, combinou hora e lugar para o encontro. Bendazon e outros funcionários da produtora foram buscá-lo no metrô. O rapaz jamais apareceu.

Os fãs são chamados de “punheteiros”. Ao longo das semanas em que nos encontramos, ouvi o termo muitas vezes: de Bendazon (nome artístico), de Sérgio, o fotógrafo da equipe, de Clayton Nunes, o CEO da Brasileirinhas. Longe de ser depreciativo, o apelido carrega certo afeto. “Punheteiros” são os clientes fiéis, aqueles que sustentam a empresa. Representam o oposto dos chamados “sazonais”, aqueles que assistem a filmes pornôs para ver celebridades menores, reanimar o casamento ou satisfazer a curiosidade. Enquanto subíamos a estradinha rumo à casa, Bendazon contava o caso do fã sorteado com ar de desolação. A produtora quisera presentear um de seus fiéis e não havia dado certo.

Quando chegamos à mansão, discreta e um pouco decadente, havia um clima de confraternização na cozinha. Dênis Nunes, administrador do espaço e irmão de Clayton Nunes, e Marcelo Ferreira, seu auxiliar, cumprimentaram todos com abraços e beijos. Haviam preparado um café da manhã farto: vários pacotes de pão de forma, duas térmicas de café, leite, suco, fatias de presunto e queijo. Após a refeição, todos se dispersaram pelos cômodos, preparando-se para a filmagem.

As casas que funcionam como locação de filmes pornográficos não duram muito – dois ou três anos, se tanto. Segundo Bendazon, passado um tempo, vizinhos reclamam, ou alguns curiosos dão um jeito de espiar, gerando inibição entre os atores. Na casa atual, alugada três semanas antes da filmagem, eles construíram uma extensão no muro para evitar que os moradores da região pudessem bisbilhotar. O local passava por uma reforma extensa e necessária: o gesso das paredes era frágil e decadente; a tinta estava gasta. Três anos antes, a produtora alugara uma casa isolada na Praia Grande, no litoral paulista. A mansão de Carapicuíba era o novo set.



O lugar não serve apenas como locação. A cada semana a produtora envia uma atriz para morar na casa temporariamente. Os assinantes do site da Brasileirinhas têm acesso a todos os cômodos através de sete canais, supostamente 24 horas por dia. Depois de um mês, uma eleição entre os assinantes determina qual atriz deve voltar ao ambiente. O programa é um pastiche dos reality shows. A própria casa parece uma versão um pouco mais sombria, mais caída, e também mais autêntica das que são vistas em programas como o Big Brother Brasil. O apresentador da Casa das Brasileirinhas é Kid Bengala – “O nosso Pedro Bilau”, conforme diz às gargalhadas Clayton Nunes, o CEO, orgulhoso do trocadilho.

Como em outros programas do tipo, o real não é exatamente real. Existe, por exemplo, um cronograma para as atrizes. Marcelo Ferreira, o Black, é o encarregado de monitorar os horários. Existem tempos mínimos, geralmente entre quarenta minutos e uma hora, para cada atividade obrigatória: piscina, academia, banho. Em certo momento a atriz deve se livrar da roupa. Os assinantes podem conversar com as moradoras temporárias pela internet em horários predeterminados. Ferreira acompanha os chats, bloqueando mensagens ofensivas e pedidos de contato pessoal. “Muitas atrizes trabalham também na noite”, ele me disse, “e acusações de agenciamento de prostituição são complicadas.”

Apesar do apelido, Black é um moreno claro, magro e de cavanhaque ralinho. Além de controlar os cronogramas do reality pornô, ele ajuda nas filmagens, nos ensaios fotográficos, na iluminação. “Pego gel, camisinha, faço de tudo.” Também organiza refeições, supervisiona a reforma da casa e cuida dos computadores. Frequentemente se ouve um grito, dos fundos ou de dentro da casa: “Ô Black!” Foi um dos poucos a não se importar com a publicação de seu nome verdadeiro na reportagem: “Tranquilo, bota aí.”

Nascido e criado em Santos, Ferreira montou móveis para as Casas Bahia por dez anos, na condição de terceirizado. Após a fusão da empresa com o Grupo Pão de Açúcar, deixou o emprego. “Ficou muito ruim para os funcionários, o salário caiu demais.” Começou então a fazer bicos. Uma de suas ocupações temporárias foi como porteiro de uma casa de swing, onde conheceu pessoas do meio pornográfico. “Caí um pouco de paraquedas aqui, mas aprendo muito rápido”, disse, enquanto fumava um cigarro no fundo da casa. No futuro, pretende se matricular num curso de foto e filmagem, não necessariamente no ramo pornográfico. “Quero fazer casamento, funeral, o que for”, comentou, rindo.

Lolah e Cindy estavam sendo maquiadas num dos cômodos do andar de cima. No chão do quarto jaziam colares, pulseiras e outras bijuterias. As atrizes vestiam fantasias minúsculas de Carnaval que continham inúmeras pedrinhas brilhantes, e pareciam mais bronzeadas do que horas antes. Cindy experimentava as roupas sem embaraço. Lolah, mais quieta, não se mostrava desconfortável com minhas perguntas, às quais respondia com uma reserva gentil. Morena, de grandes olhos pretos, ela disse que só contracena com o seu namorado, Loupan. Quando perguntei sua idade, respondeu: “Tô com 23, bem velhinha já.” Ela ficaria na mansão aquela semana inteira, participando da Casa das Brasileirinhas. Não parecia muito empolgada.



Mineira de Santos Dumont, Cindy contava que assistia a filmes pornôs aos 12 ou 13 anos. “Eu adorava. Sempre soube que me envolveria com esse tipo de coisa”, comentou, mostrando animação. Não soava falsa, ainda que atrizes pornográficas sejam encorajadas a propagar mitos desse tipo. É difícil, nesse meio, diferenciar o que é genuíno do que é inventado. Com o tempo e as distorções da memória, é provável que meias verdades ou fantasias ganhem aura de verdade plena.

Cindy enveredou para a área protagonizando filmes envolvendo fetiches em produtoras menores. Logo se destacou e foi chamada para integrar a equipe da Brasileirinhas. Um dos fetiches mais bizarros que encenou no começo da carreira consistia em chutar os testículos do parceiro. Kid Bengala certa vez a desafiou a reproduzir a cena com ele. Cindy gargalhava ao rememorar a história (“Ele aguentou o tranco”), enquanto a maquiadora Carla Lira pedia num tom de voz impaciente que ficasse parada. “Essa fala pelos cotovelos”, contou.

Carla, uma paraibana simpática de 41 anos, conserva um resquício de sotaque, a despeito de morar em São Paulo há 25 anos. Ela começou a prestar seus serviços para o meio pornô em 2004, ano que muitos consideram como o marco inicial do crescimento da indústria. Por muito tempo se importavam filmes do exterior, e pouco se produzia aqui. No fim dos anos 90, produtoras nacionais começaram a crescer. A Brasileirinhas foi fundada em 1996, mas seu auge, e o auge do pornô nacional, segundo todos os entrevistados, foi entre 2004 e 2009. A partir de 2010, afetado pela pirataria na internet e pelo aumento da popularidade de sites de compartilhamento de vídeos pornôs – como YouPorn, XVideos e Pornhub, que disponibilizam conteúdo de graça –, o mercado nacional começou a enfrentar sérios problemas.

Testemunha dos reveses na indústria, Carla encara seu trabalho com estoicismo. Apesar de a demanda ter caído, ela diz que cobra o mesmo cachê – entre 200 e 300 reais a sessão – e ainda tem certa estabilidade financeira. Não há sinal de nostalgia em sua fala quando relembra os tempos gloriosos do pornô. “As produtoras são todas meio parecidas, tinha uma época em que eu saía de uma e já ia para outra, e nem sabia o nome de onde eu estava, de tão igual que era tudo.”

Os anos de carreira lhe proporcionam certo regard lointain, uma vantagem de espectadora externa. Observou, por exemplo, que a decadência do gênero tem gerado uma espécie de autofagia. Por questões de sobrevivência e ego, o ator quer produzir, dirigir, atuar e assim por diante, num círculo que nem sempre fecha redondo. Segundo ela, há hoje menos atenção a detalhes, opera-se mais na base do improviso.

Carla sente saudade das putas. “Puta de verdade”, assim como “punheteiro”, é elogio, e não xingamento – as inversões linguísticas são recorrentes no meio. As “putas” são as atrizes profissionais, que chegam prontas para o trabalho, não hesitam, fazem tudo que se exige de uma cena. “As menininhas”, Carla disse, “ficam perguntando: ‘Mas será que eu tenho que fazer isso, será que eu tenho que fazer aquilo?’ Elas dão palpite na maquiagem, ficam com frescura para encarar o trabalho. Essas eu chamo de ‘putas de quatro paredes’. É outra coisa, viu, não são profissionais. As putas de verdade para mim são as divas. Mônica Mattos, Ju Pantera, Bruna Ferraz.”

Cindy, que ouvia, atalhou em tom sério, já maquiada: “As profissionais se poupam, não vão para a balada na noite anterior.” Não havia dúvida: ela se considerava um exemplo da categoria.



A sede da Brasileirinhas fica num edifício acinzentado, de fachada sóbria, ao lado da Praça da República, no Centro em São Paulo. A produtora ocupa apenas um dos andares. O escritório é simples, com duas salas interligadas por um cômodo maior, onde funcionários silenciosos sentam-se lado a lado. Os empregados estão conectados a sites pornográficos, mas agem como se estivessem abrindo planilhas de Excel ou PowerPoint, morosos e distraídos, o que gera no visitante um efeito desconcertante.

O CEO da firma, Clayton Nunes, iniciou sua trajetória profissional na área de informática. Nascido e criado no bairro do Tatuapé, na Zona Leste paulistana, se uniu aos 20 e poucos anos a alguns amigos para lançar uma revista de tecnologia. “Começou assim, coisa de nerd mesmo”, disse ele em sua sala. Simpático, dado a gestos efusivos, respondeu bem alto, quase gritando, quando lhe perguntei em que se formara: “Fiz administração... administração na São Luís!” – e gargalhou, como se caçoasse da discrepância entre sua ocupação e o curso.

Empolgados com as possibilidades da tecnologia audiovisual, e com a intenção de reportar inovações do meio na revista que almejavam criar, Nunes e seus sócios alugavam fitas em VHS para passar o conteúdo para DVD. Os filmes eram em grande parte pornôs. “No fim do expediente, funcionários vinham pedir cópias emprestadas, sempre discretamente. Percebi que havia uma demanda imensa por DVDs pornôs, talvez até por ser uma mídia mais maneira que o VHS, aquele trambolho que ninguém quer ser visto carregando.”

Nunes teve uma outra ideia. Começou a contatar várias produtoras de pornô, dizendo que lançaria uma “revista de sacanagem”: “Pedia dez minutos de conteúdo, e em troca dava duas páginas de anúncio. Fizemos uma compilação com as melhores cenas de vários filmes. Tinha de tudo: fetiche de pé, dupla penetração, pornô mais tradicional. Na primeira edição, vendemos 60 mil cópias com o DVD encartado.”

Nunes queria vender mais compilações em bancas de jornal. Começou a juntar capital e a comprar conteúdo. A Brasileirinhas era, então, comandada por Luis Alvarenga, um empresário que sempre resistia às investidas de Nunes. “A Brasileirinhas chegou a vender DVD por 60, 70 reais. Eu queria massificar, vender mais barato, a 10, 15 reais na banca, pegar um público com menor poder aquisitivo”, disse ele. Alvarenga, que Nunes define como um pornógrafo da velha escola – “tinha cadeirinha de diretor, cinegrafista e tudo mais” –, estava satisfeito com o modelo de negócios, focado em locadoras.

A expansão da rede de locadoras Blockbuster criou uma pressão mercadológica que obrigou a produtora a repensar seu modelo de distribuição. A rede americana – que viria a enfrentar suas próprias dificuldades, em decorrência do crescimento do mercado de streaming digital – entrara no país em 1995. Fundada no Texas, em 1985, a empresa sempre projetara uma imagem associada a valores familiares, e por isso não trabalhava com vídeos pornôs. Sua presença no Brasil forçou a quebra de várias locadoras locais, até então importantes meios de distribuição para as produtoras pornográficas nacionais. Em 2006, cinco anos após suas primeiras tentativas, Nunes conseguiu licença para a distribuição de filmes das Brasileirinhas em bancas de jornal. Em 2007, ele entrou como sócio da produtora e foi gradativamente assumindo o comando total da empresa. Em 2010, Alvarenga se desligou da produtora.

O mercado estava aquecido em 2007. Os cachês eram altos, lançavam-se DVDs, as produtoras investiam. Cerca de 100 filmes eram produzidos ao ano, e a maior parte da receita provinha da venda de DVDs. Aumentava a reputação da Brasileirinhas como uma das produtoras mais renomadas do mundo, competindo numa área que era historicamente dominada por empresas americanas e europeias.

Mesmo em posição economicamente favorável, Nunes já sentia que o tempo das vacas gordas iria para o brejo. Lembrou-se de uma conversa que tivera com o sócio, assim que entrara na produtora: “Não são só as locadoras que vão sofrer. O DVD em banca de jornal também vai acabar, você vai ver”, dissera ao outro.

Clayton Nunes cedo percebeu que precisaria cortar custos. A pirataria na internet estava a todo vapor: mal era lançado, um filme já estava disponível de graça. No Brasil, o acesso à internet mais rápida ainda estava se consolidando, e foi só a partir de 2010 que o mercado pornô nacional começou a sentir os efeitos mais nefastos da decadência que já ia avançada nos Estados Unidos. O mercado pornô nacional mal se erguia e já começava a declinar.

Nunes passou a investir num site oficial da produtora, convertendo todo o acervo para o formato digital. Com o tempo operou outras mudanças. Além de estabelecer uma equipe regular para as filmagens, contratou como diretor principal Gil Bendazon, que até então
só trabalhara com produtoras do exterior. O diretor tinha carta branca para filmar regularmente, escalar atores e atrizes, editar os filmes como bem entendesse.

Em 2007, o site da Brasileirinhas contava com cerca de 14 mil assinantes. Em 2012, a internet já representava 50% do faturamento da empresa. O problema é que a migração não foi, nem tem sido, proporcional. O faturamento da venda de filmes representa menos de um quarto do que era há cinco anos. E, se em 2007 a produtora jorrava por volta de 100 filmes por ano, no começo de 2013 esse número já havia caído para aproximadamente trinta títulos. Hoje, lança-se uma média de um filme por mês.



Renata, a segunda namorada de Clóvis Basílio dos Santos, também era prostituta. Ele continuou no ramo dos escapamentos por alguns meses, até que decidiu pedir demissão e mudar de cidade. Em 1974, arrumou serviço como torneiro mecânico em Sumaré, ao lado de Campinas, no interior paulista. Fazia eixos de caminhão para uma multinacional americana. Juntou algum dinheiro nesse emprego. Com o que sobrava do salário, viajava para São Paulo nos fins de semana. Desembarcava na cidade logo depois do almoço e passava o dia em salas de cinema, vendo pornochanchadas. Então perambulava por zonas de prostituição. Às vezes tomava um ônibus para Santos. “Eu chegava dez, dez e meia da noite na Baixada Santista, e ia direto para a zona do cais.”

A metalurgia, setor em que Basílio dos Santos trabalhava, esteve no centro das mudanças políticas dos anos 70. Foi das greves do ABC paulista, no final da década, que Luiz Inácio Lula da Silva despontou nacionalmente. Quando perguntei a Kid Bengala sobre esse período, e mais especificamente sobre a ditadura, ele não pareceu muito interessado, e até se confundiu sobre quem estava no poder. Para ele, a década de 70 foi “a época das pornochanchadas”. O ano de 1982 foi quando o “HIV começou a pegar mais”. E 1990, “o período pré-Viagra”.

Após trabalhar um tempo em Sumaré, Basílio dos Santos foi promovido a fresador ferramenteiro. Seu salário dobrou e ele se mudou para São Paulo. Na capital fez novas amizades, e em 1976 passou a organizar orgias. “Eu convencia os amigos, fazia festinhas. Não era nada pago ou profissional.” Viveu bem por alguns anos. Na passagem para a década de 80, contudo, em meio a uma crise econômica que assolaria o país por vários anos, ele perdeu o emprego.

Foi um período difícil. “Entrei para a construção civil, fui trabalhar de pedreiro”, lembrou. Havia uma ironia melancólica na situação. Seu pai, com quem tivera sérios atritos na infância e na adolescência, também havia sido pedreiro. No fim dos anos 80, com as finanças mais estáveis, ele voltou a organizar festas. Conheceu “casais liberais” da elite que também se interessavam por sexo grupal. Entre os novos amigos, havia um homem famoso de tevê – “Não vou citar o nome dele, já está velhinho”. Tinha um fetiche voyeurístico: gostava de ver negros transando com loiras. Arregimentava mulheres dispostas a satisfazer essa vontade, e depois ligava para Basílio dos Santos. Certa vez, um agenciador de prostitutas levou a própria mulher para transar com Santos, enquanto o adepto famoso do fetichismo assistia à cena. Assim como as prostitutas do cais santista, o agenciador se impressionou com Bengala. Deixou-lhe um cartão.

Passou quase um ano até que Basílio dos Santos decidiu contatar o agenciador, que lhe apresentou ao dono de uma revista. Foi ao Rio fazer um ensaio fotográfico e lá conheceu um produtor de cinema, Carlo Mossy. Brasileiro nascido em Tel-Aviv, que fizera fama na época das pornochanchadas, foi Mossy quem lhe deu o apelido fálico que adotaria para sempre.



Em seu ensaio célebre, mas estranhamente moralista, “Big red son”, o escritor americano David Foster Wallace caçoa da vulgaridade do festival Adult Video News, AVN, em Las Vegas, que todo ano escolhe os melhores da indústria pornográfica americana. Gil Bendazon se orgulha dos prêmios que recebeu. Antes de ser contratado pela Brasileirinhas, trabalhou com produtoras americanas, como Elegant Angel e Combat Zone, e se refere a esse mercado e seus diretores como o padrão-ouro, o máximo do pornô. John Stagliano é seu François Truffaut. “Ele visitou minha casa”, disse Bendazon na sede da produtora, sussurrando, como se revelasse um segredo.

Stagliano é considerado um dos mais inovadores diretores da história do pornô. Até o fim dos anos 80, os filmes em geral aspiravam a uma estética hollywoodiana. Tinham enredos, atuações e trilha sonora na hora do sexo. Inventor do pornô gonzo – nome que faz referência ao jornalismo gonzo, de Hunter S. Thompson –, Stagliano procedeu a uma revolução na indústria.[1] Seus filmes, lançados no início da década de 90, dispensavam enredo, trilha sonora ou produção. Em seus primeiros vídeos, ele e Rocco Siffredi, um ator pornográfico italiano que viria a se tornar famoso, flanavam pelas ruas. Abordavam mulheres e as convidavam para a cama. Sem enredo, sem firulas. Quase sempre eram atrizes contratadas, mas o objetivo era criar uma atmosfera prosaica, de encontro acidental. Às vezes, Stagliano se inseria na cena – filmava enquanto transava e fazia comentários para a câmera. O pornô gonzo se espalhou. Filmes como os de Stagliano eram baratos de fazer, e a demanda por esse tipo de pornografia, a julgar pelo sucesso de vendas, estava reprimida. A indústria adotou o estilo.

Bendazon é entusiasta do gonzo. “O punheteiro”, disse de modo enfático, “não quer saber de historinha, de narrativa.” Assim como Kid Bengala, os clientes fiéis – os que alimentam as caixas de e-mail da Brasileirinhas – estão mais interessados nas minúcias da transa em si. Bendazon defende o enfoque no ato, mas não participa das cenas – como dirige vídeos institucionais e comerciais de tevê, costuma cobrir a cabeça com um capuz nos sets pornográficos para preservar sua identidade.

Uma das razões que determinaram a contratação de Bendazon foi sua eficiência. Segundo Nunes, “o Gil não precisa de cinegrafista, de iluminação, de auxiliar para isso, para aquilo. É ele e mais uma pessoa no set. E só”. O apreço do empresário não se restringe ao aspecto econômico. Pelo estilo minimalista, Bendazon tem o que Nunes chama, um pouco eufemisticamente, de “ganho de privacidade nas cenas”. Os atores e atrizes se soltam mais, ficam menos inibidos. A atmosfera do real – o éthos do pornô gonzo – fica mais palpável. Há também certa admiração pessoal: “Quando descobri que tinha um brasileiro ganhando AVNs, fiquei animado, quis trazê-lo”, Nunes disse.



Bruna Ferraz, uma das estrelas do meio, participou do momento áureo do pornô nacional. Chegou a fechar um pacote de dezoito cenas com a Brasileirinhas por quase 200 mil reais. “Ganhei uma bolada na época”, contou quando nos encontramos na entrada de seu prédio, na rua Oscar Freire, em São Paulo. Bruna, que adotou o sobrenome de uma atriz da Globo que admira, vestia uma blusa de renda branca decotada e calça colada. A maquiagem, em tom verde-escuro, estava particularmente concentrada ao redor dos olhos, conferindo-lhe um quê das mulheres retratadas por Toulouse-Lautrec.

Nascida em Alegrete, uma cidadezinha gaúcha perto da fronteira com a Argentina, Bruna foi adotada por uma mulher católica e criada num ambiente conservador. Quando menina ia sempre à missa. Continua religiosa, mas suas crenças atuais são um amálgama de candomblé, misticismo (“Todos temos anjos da guarda”) e monoteísmo (“Ele é o mais importante, acima de tudo”). Às vezes a atriz escuta vozes. “Sempre femininas”, disse. “Elas me dão instruções: faça isso, não faça aquilo.”

Aos 18 anos Bruna saiu de Alegrete e se mudou para Porto Alegre. Pouco depois foi para Foz do Iguaçu e começou a dançar em boates. Aos 24 anos, incentivada por uma amiga, foi para São Paulo, onde se destacou como dançarina e logo começou a receber convites para eventos de revistas. Mas o que suscitou o interesse da indústria pornográfica foi sua presença em vídeos da internet – como já era bastante conhecida, pôde negociar um bom cachê.

Ela foi contratada numa época em que certas celebridades começavam a se aventurar no ramo. Um deles foi o ator Alexandre Frota, que deixou lembranças ambíguas de sua passagem pela Brasileirinhas. “Até a chegada dele, o pornô era totalmente marginalizado, um estigma que vinha desde a época da boca do lixo, das pornochanchadas”, comentou Nunes, e completou: “Frota desmistificou isso.” No entanto, o ator e outros que, como ele – Rita Cadillac, Gretchen, Mateus Carrieri –, rodaram filmes esporádicos só atraíram clientes sazonais. Os fãs assíduos da produtora, os “punheteiros” que sustentam a empresa, não gostam de celebridades. “Frequentemente mandam e-mails reclamando, ou então comentam em fóruns – ‘Pô, e aquela cena risível de Alexandre Frota, o pior ator pornô do mundo?’”, disse Nunes.

Bendazon também é cético em relação ao potencial dos famosos no mundo pornô. “Não dão ângulo, dificultam a vida.” Ele não considera Frota e outros como “atores pornôs de raiz”. Quando perguntei quem seria esse tipo de ator, tanto ele quanto Nunes foram categóricos: Kid Bengala.

Bruna ainda atua, mas ultimamente tem se concentrado mais na carreira de stripper e dançarina. Na última vez que filmou, contou ter fechado um pacote de três cenas por “algo em torno de 10 mil reais”, muito menos do que conseguia outrora. Ainda assim, seu cachê é maior que o de outras atrizes. A maioria dos entrevistados estimou ganhar, por cena, entre 200 reais – de produtoras menores, independentes, que burlam requisitos legais e nem pedem identificação aos participantes – e 1 500 reais – de produtoras renomadas e estabelecidas. Ninguém quis declarar exatamente quanto ganha.



Se, por um lado, a revolução gonzo libertou a pornografia do pastiche, da imitação de segunda mão de Hollywood, ela também facilitou a cultura do “Faça você mesmo”, lema do empreendedorismo. O pornô amador, filmado por pessoas em suas casas ou lugares públicos, é hoje responsável por uma fatia significativa do consumo.

Nunes não acredita que a produção amadora seja a pá de cal das produtoras. “São nichos. O cara que vê filme amador em geral só gosta de filme amador. Muitas vezes o que o atrai é o fato de que aquilo foi filmado sem consentimento, por exemplo. Não é o que a gente faz. A Brasileirinhas é conhecida pelos filmes bem-feitos, acho que nem se quiséssemos conseguiríamos mudar essa imagem.” O problema maior, na avaliação de Nunes e Bendazon, são a pirataria na internet e os sites que disponibilizam conteúdo ilegalmente, de graça. É um problema insolúvel, impossível de monitorar. O mercado para DVDs pornográficos está a ponto de se extinguir. “Hoje você lança um DVD para mostrar que está vivo. Virou operação de marketing. Não dá lucro nenhum”, falou Nunes.

No dia da filmagem, no carro, quando já voltávamos a São Paulo, Bendazon contou que dentro de seis meses a Brasileirinhas provavelmente não lançaria mais DVDs para venda; o acervo será apenas digital. Do banco de trás, Loupan, que acabara de atuar aquela tarde, se assustou: “É sério?”

Paulistano do bairro de Santa Cecília, moreno, baixo e forte, Loupan, de 31 anos, sempre começa as frases como se estivesse a ponto de fazer uma revelação (“Posso te falar uma coisa?”, “A verdade é a seguinte”), e conclui com uma piscadela de olho, satisfeito. Ainda menor de idade, ouviu de uma de suas primeiras namoradas a sugestão de trabalhar como ator pornográfico. Dois dias depois de completar 18 anos, fez um teste. Foi aprovado e nunca mais parou de atuar. Orgulhoso da profissão, ele com frequência menciona os bens conquistados com seu trabalho – carro, casa própria (“Comprei meu primeiro apartamento aos 21 anos”) e, mais recentemente, um curso de inglês. (Naquela tarde, um pouco antes das filmagens, Lolah o chamou para estudarem juntos.)

Loupan não esconde a raiva dos piratas: “Dá vontade de entrar no computador e espancar esses caras”, disse-me, deitado numa cadeira ao lado da piscina, com os olhos semicerrados e uma expressão serena que contrastava com suas frases incisivas. “Não gosto muito de jornalista”, disse a certa altura, calmo, sem traço de agressividade. Ele não vê na pirataria um problema sistêmico. É uma questão de caráter: “Tem muito espertalhão no mundo.” Apesar de criticar os que pirateiam, e tacitamente admitir o declínio da indústria, Loupan não acredita que sofra ou venha a sofrer as consequências da queda. “Quem é bom é bom, não tem concorrência.” É uma atitude comum no meio. O declínio é aceito em termos abstratos, mas nunca de maneira individual, concreta. A regra geral é válida, mas todos se consideram exceções.

Sérgio, o fotógrafo da equipe, paulistano filho de japoneses, de 56 anos, é um que não se esquiva de admitir a decadência. Preserva a identidade por razões financeiras. “Antes a gente sustentava a família com o pornô, mas agora, que já não dá tanto dinheiro, não é legal se expor.” Como atua em outras áreas – sobretudo fotos para jornais e anúncios de joias –, prefere manter o anonimato. De estatura média, camisa polo, óculos de grau e um ar tranquilo, só uma tatuagem na parte interna do antebraço destoa de seu aspecto circunspecto. A tatuagem traz o sobrenome de sua família, grafado em japonês.

Para Sérgio, o declínio da fotografia antecedeu o do pornô. “O trabalho do fotógrafo profissional ficou muito difícil. Você mesmo poderia ter tirado uma foto para essa matéria com seu telefone, não é?” Por já ter experimentado uma turbulência, ele parece ter uma visão mais abrangente do assunto. Evitando a atitude negacionista com que muitos tentam se defender de um futuro sombrio, Sérgio enxerga a decadência da indústria dentro de um contexto maior – é apenas mais uma das áreas que têm sofrido com o advento das novas mídias. “Como o jornalismo, né?”, disse, com um sorriso cúmplice.



Em Experiência, seu livro de memórias, o escritor britânico Martin Amis discorre sobre a dificuldade de escrever bem sobre sexo. O problema consistiria no fato de cada ser humano ter preferências muito específicas nesse âmbito, e daí ser complicado extrair de uma experiência concreta, individual, a universalidade necessária à literatura: o oxigênio da empatia. Diante de um sem-número de opções narrativas, recorremos a clichês.

A premissa de Amis é perceptível em filmes pornográficos. Ainda que diferentes uns dos outros, todos eles têm um componente ritualístico e previsível. As interlocuções são sempre as mesmas (“Vai, vai!”, “Que bom!”, “Caralho!”), bem como a apresentação, regida por padrões e modas (genitália depilada, maquiagem densa).

Bendazon me prometera acesso à cena que iria filmar, frisando, porém, que eu não deveria permanecer dentro do cômodo, para não constranger os participantes. O aparente paradoxo se resolveu. No dia da filmagem, postado do lado de fora da casa, eu poderia espiar por entre uma cortina de bambu que resguardava o set.

Não assisti mais do que uns poucos minutos, incomodado por assumir aquele papel de voyeur. A filmagem ocorria no mesmo quarto que, horas antes, quando chegamos para o café da manhã, parecia escuro e melancólico, com colares carnavalescos espalhados pelo chão. Gil Bendazon, encapuzado, segurava a câmera; Black se concentrava no laptop, sem capuz; Cindy movia-se sobre Loupan, que estava deitado num sofá; Lola revezava seus esforços entre os dois. A cena, genérica e similar a tantas outras, o reflexo do vidro e o isolamento acústico me davam a impressão de estar vendo um filme através de uma tela.

Tarde da noite, terminada a filmagem, todos foram recolher suas coisas para voltar a São Paulo. Na sala sobrou apenas Kid Bengala, que havia interrompido a entrevista comigo para gravar a apresentação da Casa das Brasileirinhas. Retomamos a conversa. Largado no sofá, sem camisa, as câmeras desligadas mas ainda apontando em sua direção, Bengala voltou a falar de si.

Após rodar seu primeiro filme pornográfico, em 1990, no Rio de Janeiro, o ator ficou apenas alguns meses na cidade. Fez mais dois filmes, “para aprender a lidar com as câmeras”, e esperando ser chamado para atuar no exterior. Ouvira que profissionais como ele ganhavam muito dinheiro na Europa e nos Estados Unidos. (Anos depois descobriria que os atores de fora não eram tão bem remunerados: “Essa história é balela. O que se ganha aqui ganha-se lá, a diferença é pouca.”) De todo modo, como na época ainda não existia uma indústria nacional de pornografia, Bengala retornou a São Paulo. Seguiu sua vida como fresador ferramenteiro e retomou as orgias com amigos.

Um desses amigos, Sandro Lima, viria a se tornar cinegrafista da Brasileirinhas. Quando o mercado cresceu, por volta de 2003, 2004, ele convidou Bengala a voltar à ativa. A princípio, o ator não acreditou que a proposta pudesse cobrir seu salário na fábrica – lembrava que em 1990 o mercado não pagava bem. Ofereceram muito mais. Já na casa dos 50 anos, ele assinou um contrato de dois anos e logo passou a ser um dos atores mais importantes da pornografia nacional, a ponto de ser disputado pela concorrência.

Contou que há poucos anos a Falotex, empresa que produz extensores penianos, investiu na criação de uma réplica de seu pênis. A Adão e Eva Toys, uma outra empresa, recentemente fez uma oferta para expandir em escala nacional a distribuição do artefato. Bengala ganha royalties sobre cada unidade vendida. Quando perguntei se o declínio da indústria poderia afetá-lo de alguma forma, ele foi enfático, passando do uso da primeira para a terceira pessoa: “A queda do pornô nunca alterou minha vida, em nada. Porque o Kid Bengala é um ícone.”

Estimulado pela notoriedade alcançada, em 2008 o ator decidiu candidatar-se a vereador pelo PPS (Partido Popular Socialista). Fez campanha em prostíbulos, cabarés, boates. Abordou camelôs que vendiam seus DVDs na rua 25 de Março. Conseguiu menos que mil votos. Afetado pela derrota, teve o que define como uma “semidepressão”. Passou um tempo na Europa, filmando em Hanover, na Alemanha, e em Salzburgo, na Áustria, mas não se adaptou. “Fiz uma doideira”, disse, referindo-se à eleição. “Candidato de primeira viagem sempre acha que vai ganhar.” No ano passado, no entanto, voltou a se candidatar, desta vez a deputado estadual pelo PTB. Com pouco mais de mil votos, foi novamente derrotado.

Ele desacelerou o ritmo da fala ao comentar os reveses. Mas o desânimo durou pouco. Alguns instantes depois, Bengala já estava falante e efusivo novamente. Enquanto discorria sobre a sua vida em São Paulo e a ascensão ao estrelato pornô, interrompeu o raciocínio, como se tivesse esquecido de dizer algo importante. Parecia o prelúdio de mais uma digressão sexual, talvez uma lembrança do cais de Santos e das suas primeiras namoradas. Mas, sorrindo, ele apenas arregalou os olhos e perguntou na minha direção: “Ô, jornalista, você já viu o tamanho dele?”


por Alejandro Chacoff




#