segunda-feira, 20 de agosto de 2018

PUTAFEMINISTA

(**) A prostituição no Brasil faz parte de um espectro tão marginalizado que não é incomum ver pessoas bem estudadas e supostamente bem informadas tratando as trabalhadoras sexuais como uma massa uniforme. É nesse contexto que Monique Prada, que é prostituta, criadora do site Mundo Invisível e também uma das idealizadoras da Central Única de Trabalhadoras Sexuais (CUTS), lança seu primeiro livro Putafeminista pela coleção Baderna da Editora Veneta no dia 25 de agosto.

“Não somos mais invisíveis”, exclama Prada em uma das páginas do livro. A autora, que encontrou na internet um espaço de debate, conta como a rede mundial de computadores foi um dos principais meios para dar voz e rosto para essas profissionais. Monique também desmistifica erros bastante comuns que rondam o tema, como a exploração sexual infantil, um crime que costuma ser colocado no mesmo balaio da prostituição (que não é crime), além de explicar que é possível ser uma mulher feminista e trabalhadora sexual sem ter vergonha disso.

Longe dos clichês da Bruna Surfistinha e do glamour forçado que costuma-se empurrar para essas mulheres, a escrita direta e ácida de Monique descreve também o moralismo e a hipocrisia dentro de movimentos ditos progressistas, que seguem dando cambalhotas ideológicas para não reconhecer a luta das prostitutas. “Eu, quando comecei a frequentar os ambientes de militância, aqueles onde as pessoas deveriam ser menos preconceituosas, precisava lidar com pessoas me tratando como imbecil todo o tempo, falando devagarinho, pra que eu entendesse as suas palavras. Me explicando sobre temas que eu conhecia melhor que elas. Cuidando suas coisinhas pra que eu não as roubasse. Não deixa de ser engraçado, até por que a única coisa que elas sabiam sobre mim era isso: Monique é uma puta. (...) Eu sempre me diverti com a hipocrisia das pessoas. Certamente muito mais do que elas imaginam”, conta em entrevista por e-mail à VICE.

Para além disso, o leitor também tem a oportunidade de entender o que é a prostituição brasileira e seus percalços legais sem mediadores acadêmicos suavizando palavras e situações. Se trata, afinal de contas, da escrita de uma mulher, uma mãe, uma puta e uma brasileira. Ainda que exista um véu sobre quem são essas mulheres e siga corrente a ideia de que elas precisam ser salvas, Monique deixa claro que as trabalhadoras sexuais escutam seus clientes mais do que as pessoas imaginam. “Todos os trabalhadores passam por ali. E as putas? Ainda que não obtenham apoio para suas próprias reivindicações, estão atentas. Acredito que devemos esperar pela grande revolução, essa onde as putas defendem também os seus direitos, e em especial o direito de andar de cabeça erguida no meio das pessoas”, frisa.

O próprio título do livro sugere ao leitor considerar a existência de uma corrente do feminismo onde as putas, óbvio, são as protagonistas e donas de suas próprias narrativas. Prada também questiona as “soluções” oferecidas por políticos de bancadas conservadoras e feministas que não reconhecem a prostituição como trabalho sexual para extinguir a categoria. Essas sugestões e conceitos de um mundo sem a figura das putas são chamadas de “utopia distópica” pela autora.

“Num período em que as políticas de austeridade tomam o mundo, esperar que um grande número de mulheres pobres não recorram à prostituição para seu sustento e de suas famílias é um erro”, argumenta. “Ao mesmo tempo, há uma guerra mundial contra a prostituição e contra as prostitutas. Se tenta banir a prostituição através de leis em vários países, se discute as supostas benesses do modelo sueco, implantado - sem sucesso, e como parte de um pacote grande de medidas para a igualdade de gênero - na Suécia em 1999 e agora reproduzido na França. Estamos em 2018 e as trabalhadoras sexuais na Suécia, que em 1999 passavam pouco de 500 anunciantes, já contam mais de cinco mil (os dados são do governo sueco, e devem constar do dossiê de Pye Jacobson sobre o fracasso das políticas de ‘abolicionismo’). O que se consegue com essas leis? Um status de indigente moral para as trabalhadoras sexuais, em uma realidade de preconceito e segregação. Muitas das leis sobre prostituição ao redor do mundo também visam atacar pessoas migrantes que desejam ou precisam, ou ambas as coisas, exercer o trabalho sexual em um país que não seja o seu país de origem. São leis baseadas em xenofobia.”

Acima de tudo, o livro de Monique não pretende pregar para convertidos, mas também informar e convidar o leitor a ver a prostituição sob a perspectiva de quem vive disso sem utilizar recursos clichês da “puta feliz” da “puta rica” ou da “puta coitada”. “A sociedade nos divide em dois modelos, às vezes mesmo mixando ambos, conforme sua conveniência. A puta rica, como julgam ter sido a Bruna Surfistinha - uma visão bastante torta, considerando o que ela mesma relata em livro, uma garota que precocemente saiu da casa dos pais e viu na prostituição um meio de sobrevivência temporário. Ou algo que remeta ao sofrimento, à devassidão, ao abuso de drogas e à precariedade. Que uma mulher possa ter o trabalho sexual através da prostituição como meio de garantir uma vida financeiramente digna para si e para os seus não lhes ocorre”, finaliza. /////////////////////////////////

(*) Monique Prada não é uma mulher comum. A forte personalidade, com fala pausada e ponderada, é comparável apenas à marcante presença online em seus perfis nas redes sociais. Entre suas grandes ousadias, está o fato de ser uma mulher que ousa ser feminista, sexuada e inteligente ao mesmo tempo.

Para todos os casos, não poupa palavras – escritas, na maioria das vezes. Monique é prostituta e divide seu tempo entre o trabalho que lhe provém sustento e a atuação como feminista que extrapola a esfera virtual. Se todo ato é político, ela leva a máxima a todos os lugares, até para a cama. "Mesmo quando estou entrando em um trabalho, tenho a liberdade de falar alguma coisa graças à internet do telefone. Não é que eu fique parada num escritório fazendo o meu ativismo, estou na rua, em qualquer lugar”, conta.

Numa tarde de feriado fria e cinza na capital gaúcha, Monique aparece para um encontro com a reportagem em que falará da batalha pelos direitos das prostitutas e pelos das mulheres. Vive e fala sobre prostituição, ativismo e feminismo, intensa e furiosamente, o que, às vezes, não deixa de lhe trazer contratempos. “A partir do momento em que tu começa a falar, o teu trabalho começa a dar uma despencada”, revela, ponderando que já deve ter perdido alguns clientes. “Não é uma interação que se espere de uma prostitua, que tenha opinião e que, eventualmente, essa opinião entre em conflito com a tua. Não é conveniente, mas eu já tenho uma lista de clientes bem antiga, então não chega a me prejudicar gravemente”, afirma Monique, que é prostituta desde os 19 anos e ativista há cinco.

Acontece de, é claro, ela deixar a cama de alguém em função de algum tópico sensível. Outras vezes, deixa a política pra lá: “Conversamos muito o tempo todo [online], então, quando encontro com eles, prefiro o sexo”. Acontece ainda de ser procurada justamente por seus posicionamentos. “Um cliente me seguia no Twitter e começou a me chamar pra sair, como se fosse pra me convencer de que o que ele fez foi uma coisa boa”, lembra ao falar de um militar que participou da ditadura no Brasil.
Monique defende os direitos das minorias e não recusa trabalho por conta de visões reacionárias. “Mas não escreveria para um portal de direita”, garante a coeditora do Mundo Invisível, um site que trata de temas LGBT, feministas, da prostituição e de direitos de cada um dos grupos. Com a tradução também de artigos publicados no exterior, o portal ajuda a expandir a educação sobre o tema.

Com base na premissa, ela mantém uma carta de clientes de longa data, numa história que começou por um impulso já desde muito cedo sentido: tinha curiosidade em fazer sexo com estranhos. “Acontecia de eu pegar uma carona ou outra e fazer sexo”, revela. Mais sobre sua trajetória? Silêncio. "Não faz sentido [falar disso]", justifica.

A opção pelo trabalho sexual não foi fácil. Aos 19 anos, era estagiária do Ensino Médio e ganhava muito pouco. “Você tem que conviver num mundo em que há pessoas com poucas opções. Há pessoas que têm a opção de catar lixo ou de fazer um trabalho doméstico ou sexual. Considero que há uma condição mais empoderadora no trabalho sexual. Parece melhor trabalhar com sexo, mas todo trabalho tem seu lado complexo”, avalia.

Monique defende a profissão como uma escolha, mas lembra que ser trabalhadora sexual não é aquela imagem bonita da prostituta jovem que quer pagar os estudos e sustentar a família, como é representado nas novelas. “É uma escolha muito difícil, tem um estigma muito grande. Do meu trabalho eu gosto, as consequências dele é que são desagradáveis.”

Muito da visão preconceituosa que é mostrada do trabalho sexual parte de um entendimento que há na atividade exploração da mulher. É o que Gabriela Leite, a primeira prostituta a militar em favor dos direitos das trabalhadoras sexuais no País e fundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, tentava explicar, lembra Monique: “Há a prostituta que vai fazer qualquer coisa por uma pedra. Para essa moça, se você pedir que ela faça um malabarismo, ela vai fazer. Ela não é uma profissional, ela está lutando pelo direito dela”. O mesmo serve para uma mulher que troca sexo por comida.

Gabriela faleceu em outubro de 2013 e deixou o “movimento órfão”, segundo Monique. Por isso, o aparecimento de militantes como ela se torna ainda mais importante para dar seguimento ao trabalho e promover pautas que estão há muito engessadas. Mesmo contando com um apoio emergente de ativistas feministas no mundo todo, a escolha da prostituição como profissão é alvo de críticas. “Somos vistas como vítimas, como na Síndrome de Estocolmo. E não somos, estamos trabalhando. Todas as pessoas exercem seu trabalho e precisam de algum modo se submeter aos patrões. O desafio do trabalhador sexual é não se submeter ao desejo alheio, simplesmente”.

Para Monique, ser prostituta e feminista ao mesmo tempo é possível, e buscar este ponto de convergência é uma das missões que ela assumiu para 2015, cinco anos depois de ter assumido o ativismo digital. “A sexualidade da mulher é uma coisa clandestina. Enquanto o homem pode e deve expor o quanto ele é promíscuo, conquistador, maravilhoso, nós nos escondemos. E imagina como é isso para uma prostituta que tá lá na esquina, ou na esquina da tua internet, no site, sempre de rosto coberto, de nomes trocados, com muito medo.”

Aos poucos, ela deixa a clandestinidade com o apoio de seus interlocutores na internet, da família e de movimentos espalhados pelo mundo. “Mas a personagem Monique deixou de existir pra mim faz tempo”, garante a prostituta que sempre trabalhou longe da abordagem direta. "Sou muito tímida."

O estigma que acompanha o sexo feminino é muito maior se pensado sob a ótica da trabalhadora sexual, que não tem direitos trabalhistas – uma luta que a gaúcha também abraçou, organizando um debate na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul para discutir os problemas da profissão e seus possíveis rumos.

No cerne da questão, balizada pelo Projeto de Lei (PL) Gabriela Leite, de Jean Wyllys (PSOL-RJ), está a regulamentação do trabalho sexual e a descriminalização da prostituição em locais privados – que atinge não só as casas de prostituição, mas também os espaços privados das prostitutas, suas próprias camas. A prostituição é uma profissão reconhecida pelo Código Brasileiro de Profissões desde 2002.

O trabalho de Monique é uma forma de afirmar o poder feminino frente às visões conservadoras que ainda persistem. O que não deveria separar as mulheres, mas uni-las, numa forma de luta contra o status quo, que mantém o feminino refém de uma criação social fundamentada no patriarcado. “A pior ofensa para uma mulher é ter uma vida sexual, e uma vida sexual ativa, mudar de parceiros. Esse é o estigma da puta”, explica.

Um estigma e um preconceito que não se encerra nas mentes conservadoras ou masculinas, como se bem sabe: “Não tem a ver com cobrar por sexo. Tem a ver com regular o sexo das mulheres. Nós vigiamos a sexualidade uma da outra, nós mesmas reprimimos. Não entendo como nos convenceram disso”.

* #cartacapital - por Fernanda Morena 
** VICE - por Marie Declercq

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